26/12/2024

CRÍTICA | BABYGIRL



Babygirl, dirigido por Halina Reijn, é uma intrigante exploração das complexas camadas da sexualidade reprimida e da dinâmica de poder dentro do ambiente corporativo. Com Nicole Kidman no papel principal de Romy, uma poderosa CEO que parece ter a vida perfeita, uma carreira de sucesso, uma família amorosa e uma vida social invejável, o filme vai além da fachada de sucesso para revelar os desejos secretos e conflitantes de uma mulher que busca algo mais. Algo mais, no caso de Romy, é um caso tórrido e imprevisível com seu estagiário, Samuel, interpretado por Harris Dickinson.

Desde o início, "Babygirl" se destaca por seu tom ousado e provocativo. O filme abre com uma cena sexual, que é rapidamente desafiada pela frieza e desconexão emocional de Romy, simbolizando a falsidade das expectativas que ela tenta sustentar. Essa introdução não é apenas uma provocação, mas estabelece o tom de um filme que explora como o controle e a repressão podem se transformar em desejo e, eventualmente, autodestruição.

Nicole Kidman oferece uma performance bem interessante como Romy, uma mulher que, apesar de ser o epítome do sucesso profissional e social, carrega uma angústia emocional profunda. Sua interpretação é multifacetada, refletindo uma mulher que não apenas tenta se libertar de sua rotina, mas também se encontra em um turbilhão psicológico, dividida entre a liderança e o desejo de ser submissa. Kidman interpreta com uma delicadeza sombria, onde a erotização de seu personagem se mistura à dor de suas escolhas impulsivas.

A química entre Romy e Samuel, seu estagiário e amante, é uma das mais intrigantes do filme. Samuel não é apenas um jovem estagiário atrevido, mas uma figura que vai além do simples papel de sedutor. Ele se torna o agente que desafia Romy, quebrando as regras de poder no escritório e, ao fazê-lo, acendendo nela um desejo de transgressão. Sua atitude insolente e seu comportamento provocador transformam sua relação em um jogo de poder sutil e erótico, onde ele constantemente testa os limites de Romy, tanto no sentido profissional quanto sexual.


A construção do filme, no entanto, não é completamente sem falhas. Embora o tema da sexualidade feminina e o jogo de poder sejam explorados com inteligência e certa nuance com uma paleta de cores quentes bem interessante indo até os créditos, "Babygirl" às vezes peca por sua abordagem excessivamente mecanicista. A narrativa parece mais uma construção cuidadosamente projetada do que um mergulho emocional profundo nas consequências reais das escolhas de Romy. O filme oferece uma crítica interessante à cultura corporativa e à opressão tecnológica, mas os momentos de reflexão mais profundos são frequentemente diluídos em cenas que, embora eficazes, não oferecem um verdadeiro avanço emocional.

Além disso, o filme evita um final tradicionalmente moralista, o que é uma boa escolha, considerando o gênero erótico ao qual pertence. Reijn não opta pela moralização excessiva ou pela condenação dos personagens, como vimos em filmes clássicos de thriller erótico. Em vez disso, ela opta por mostrar as consequências de uma forma mais ambígua, onde os personagens, especialmente Romy, continuam a se punir, mas de uma maneira que se sente mais genuína.

No aspecto visual, "Babygirl" é competente, mas não particularmente inovador. A direção de arte e a cinematografia capturam bem a frieza do mundo corporativo, mas as cenas de sexo, embora audaciosas, às vezes carecem da exposição necessária para um filme que se propõe a explorar uma sexualidade tão complexa.

Babygirl é um bom drama erótico que oferece uma visão interessante e provocadora sobre os desejos reprimidos e as relações de poder no ambiente de trabalho. Enquanto a performance de Nicole Kidman brilha em sua complexidade emocional, o filme, apesar de suas boas intenções e momentos poderosos, não consegue ir além da superfície de suas provocações. Reijn mostra habilidade ao contar sua história, mas o filme, em última análise, parece um pouco mais frio do que deveria para um tema tão quente.

19/12/2024

CRÍTICA | O Auto da Compadecida 2


A sequência de O Auto da Compadecida (2000), uma das maiores joias do cinema brasileiro, chega aos cinemas com uma responsabilidade gigantesca: reviver os amados personagens João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) em uma trama que inevitavelmente seria comparada ao clássico de Guel Arraes. O Auto da Compadecida 2 se inscreve em uma longa lista de continuações que, apesar de divertidas, não conseguem escapar da sombra do primeiro filme.

Em sua essência, a trama parece seguir a receita já conhecida, a dupla de espertinhos volta a se envolver em situações absurdas e hilárias, com João Grilo retornando à cidade de Taperoá, agora tratado como um ícone após ser “ressuscitado” milagrosamente. Ao lado de Chicó, ele se vê envolvido nas tensões políticas locais, especialmente em uma eleição para prefeito. Mas, por mais que a história se reconecte com elementos do filme original, o que deveria ser uma atualização tão esperada, se torna um reflexo de si mesma, sem ousadia ou frescor. 

O maior problema de O Auto da Compadecida 2 está na sua dependência excessiva do prestígio da obra original. O filme se alimenta da nostalgia com inúmeros flashbacks, mas oferece pouco em termos de inovação. Em vez de seguir em frente com novos desafios, o roteiro se enrola em uma trama previsível, onde o grande destaque são os diálogos e as interpretações dos atores, que, por mais que sejam interessantes, não conseguem esconder a falta de aprofundamento. A direção de Guel Arraes e Flávia Lacerda, apesar de habilidosa, não consegue contornar a artificialidade de uma produção que abusa do CGI e da dublagem, criando um contraste estranho entre a teatralidade e a modernidade digital. 


As atuações, no entanto, são o ponto forte da produção. Selton Mello mantém-se fiel a Chicó, mas com um toque de maturidade que traz novos matizes ao personagem. Matheus Nachtergaele, por sua vez, reafirma sua conexão intrínseca com João Grilo, entregando uma performance que se destaca, inclusive em momentos em que o personagem se reinventa. Ao lado de outros nomes como Fabiula Nascimento, Luís Miranda e Eduardo Sterblitch, o elenco se destaca por sua competência e química, especialmente nas cenas de comédia mais afiadas.

Do ponto de vista estético, o filme também apresenta um belo trabalho de design de produção, que mescla elementos do realismo mágico com a teatralidade, criando um cenário encantador. No entanto, é impossível ignorar o excesso de referências e a edição frenética que, em certos momentos, parece tentar imitar a energia do original sem conseguir reproduzir sua essência. 

O Auto da Compadecida 2 é uma continuação que, embora divertida, se perde em sua tentativa de homenagear o primeiro filme sem oferecer algo novo. O caráter metalinguístico e as revivências de cenas anteriores, ao invés de aprofundar a trama, acabam por ressaltar a fragilidade da proposta. A nostalgia não é suficiente para esconder os problemas estruturais de um roteiro previsível e de uma direção que, apesar de competente, não ousa arriscar. Por mais que o retorno a esse universo seja bem-vindo para muitos, fica claro que o legado do primeiro filme segue intacto, enquanto a sequência, embora agradável, não é indispensável.

MEU GOTY DE 2024 | SILENT HILL 2 REMAKE

Sempre tive contato com a franquia Silent Hill, embora tenha finalizado apenas Shattered Memories no PlayStation 2. Ainda assim, tenho plena consciência da importância da série para o gênero survival horror e do peso que Silent Hill 2 carrega. Por isso, fiquei imensamente empolgado com o anúncio do remake do clássico.

Há muito tempo não jogava um título que me envolvesse tanto, capaz de me provocar um verdadeiro medo. Silent Hill 2 conseguiu fazer isso de forma magistral. Começando pela jogabilidade, que está excelente, fluída, intuitiva e muito agradável de controlar. No aspecto gráfico, o jogo é deslumbrante, e em uma TV OLED ele atinge um nível ainda mais impressionante. A trilha sonora e a ambientação merecem uma nota 11/10: a música, por si só, tem o poder de me paralisar, criando uma tensão angustiante que me fazia hesitar em avançar. A sensação de medo era palpável a cada passo.

Minha primeira jogada, que normalmente dura 10 horas, durou cerca de 20 e poucas horas. O principal motivo foi o impacto psicológico do jogo, o medo me fazia andar devagar e sempre manter a mira voltada para locais que poderiam conter inimigos. Mas outro fator importante foi o quanto fiquei imerso na história. Eu não queria que a experiência acabasse. A cada nova descoberta, um novo choque. E quando digo “choque”, falo de momentos extremamente pesados que me fizeram marejar os olhos. O fato de não conhecer bem a história do original ajudou a aumentar essa sensação de surpresa e apreensão.

Silent Hill 2 foi, sem dúvida, a melhor experiência que tive com videogames este ano, e duvido que algum outro jogo consiga superar esse sentimento. Afinal, é disso que se trata o videogame: criar experiências profundas e inesquecíveis. Obras como essa são exatamente o que precisamos no mercado atual.

Para concluir, Silent Hill 2 merece todos os aplausos e prêmios que ganhou e poderá ganhar próximas premiações. Embora não tenha sido indicado ao GOTY, Silent Hill 2 é o meu GOTY de 2024.

Nota: 11/10

18/12/2024

CRÍTICA | NOSFERATU


Robert Eggers, conhecido por sua habilidade em mergulhar fundo nas complexidades históricas e psicológicas, traz uma reinvenção impressionante do clássico de terror de 1922, Nosferatu, de F.W. Murnau. Esta versão, ambientada no século XIX, é mais do que uma mera atualização de uma obra prima do cinema mudo; é uma exploração contemporânea de temas universais que transcendem o terror, como a repressão, o desejo, a moralidade e a doença mental.

O ponto de partida da história é familiar, com Thomas Hutter (Nicolas Hoult) viajando para a Transilvânia para negociar a venda de uma propriedade com o misterioso Conde Orlok (Bill Skarsgård). No entanto, Eggers vira a trama de cabeça para baixo ao dar mais profundidade à personagem de Ellen (Lily-Rose Depp), que não é apenas uma vítima passiva, mas uma mulher consciente de sua própria luta interna com a sexualidade, a repressão e o medo que Orlok desperta. A introdução de Ellen é inquietante, com a jovem sendo subjugada a forças invisíveis, criando uma conexão precoce com o vampiro que transcende o convencional "romance" com o monstro. Eggers resgata a essência do filme de Murnau, mas também subverte a tradicional dinâmica de poder, tornando Ellen o centro de sua própria narrativa.

No núcleo do filme, encontramos uma reflexão sobre o que é a moralidade e de onde ela se origina. A sociedade trata Ellen como uma mulher instável, atribuindo sua angústia a doenças mentais enquanto ignora a verdade que ela tenta desesperadamente transmitir. O filme, então, se torna um comentário perturbador sobre como as mulheres, especialmente aquelas que desafiam normas sociais e expectativas, são vistas e tratadas. A repressão sexual é uma constante, e Orlok, com sua presença monstruosa e sedutora, se torna a personificação da opressão e do desejo reprimido. Há uma tensão palpável entre o desejo e a violência, com a personagem de Ellen lidando com uma realidade distorcida entre esses dois extremos.

Bill Skarsgård, como Conde Orlok, oferece uma performance de arrepiar. Sua encarnação do vampiro é profundamente perturbadora, não apenas fisicamente, mas na maneira como sua voz e presença vão se infiltrando aos poucos, quase como um pesadelo que não sabemos se é real. A decisão estética de Eggers de tornar Orlok uma figura cadavérica e imponente, em vez de um simples monstro sedutor, adiciona uma camada de desconforto. O uso da fotografia sombria, com sombras tortuosas e uma iluminação que parece irreal, amplifica o clima de distorção e desespero.


A questão da doença mental é outra temática central, com Ellen sendo vista como "louca" ou "deprimida", mas Eggers e Depp transformam esse estigma em algo muito mais profundo. O corpo de Ellen, contorcido e invadido pela presença de Orlok, torna-se o campo de batalha onde se travam batalhas internas que ninguém mais entende. Eggers traz à tona uma reflexão sobre como a sociedade lida com o sofrimento das mulheres, especialmente quando esse sofrimento é invisível, e o faz de maneira tanto arrebatadora quanto perturbadora. A ideia de ser ignorado e diagnosticado erroneamente ressoa de maneira forte, fazendo o filme não apenas assustador, mas emocionalmente devastador.

O uso de uma trilha sonora que ecoa o som do próprio mal, a repetição do suspiro e gemido de Orlok, e a alternância entre a realidade e o pesadelo transporta o espectador para um estado onírico. A narrativa visual, ao mesmo tempo desconcertante e fascinante, parece flutuar entre o real e o imaginário, com Eggers utilizando sua câmera como um instrumento para nos puxar mais fundo no abismo psicológico da história.

O filme também é um estudo de como os filmes de terror evoluíram, com Eggers não apenas rendendo homenagem ao Nosferatu original, mas também incorporando elementos do filme de Coppola de 1992, criando uma narrativa de amor obsessivo e perseguição. Isso torna Nosferatu não apenas uma reinterpretação, mas uma fusão de influências que ressoam no contexto contemporâneo, abordando questões de poder, desejo e controle.

Em um ano de grandes lançamentos no gênero de terror, Nosferatu de Eggers se destaca como um dos maiores marcos. Não é apenas um filme de vampiro, mas uma obra de arte profundamente inquietante, que combina o grotesco com o psicológico e o filosófico. Com uma cinematografia impressionante, performances memoráveis e uma direção refinada, Nosferatu não apenas assusta, mas faz o espectador questionar suas próprias convicções sobre moralidade, desejo e o que significa ser humano. Em um mercado saturado de remakes e reboots sem alma, Eggers prova que há ainda espaço para o novo e o criativo, oferecendo uma versão do clássico que fala diretamente aos horrores do nosso tempo, apesar de ser um longa bem pesado e com tudo muito explícito.

Esse Nosferatu é mais do que um remake, é uma reinterpretação carregada de simbolismo e tensão emocional, um filme que assombra e, por fim, parte o coração.

CRÍTICA | Mufasa: O Rei Leão


Em Mufasa: O Rei Leão, a Disney propõe uma expansão da saga que já é um marco cultural com seu clássico de 1994, agora com a direção sensível e refinada de Barry Jenkins, responsável por Moonlight. Essa prequela fotorrealista, enquanto familiar, abre novos caminhos ao explorar a origem do grande rei, Mufasa, e os eventos que o levaram a se tornar o líder venerado de Pride Rock. Com uma abordagem mais introspectiva e dramática, Jenkins consegue dar uma profundidade inesperada a uma história que já conhecemos, mas ainda nos encanta. 


A trama gira em torno de Mufasa, desde sua infância humilde e dramática até sua ascensão ao trono. O filme, em seus momentos iniciais, revisita a tragédia de sua perda familiar, sendo arrancado de seu lar por uma enchente devastadora. Ao ser acolhido por um novo bando, ele encontra Taka, o futuro Scar, dando início a uma amizade que logo será corroída pela inveja e rivalidade. Jenkins e o roteirista Jeff Nathanson exploram o contraste entre Mufasa, a figura de empatia, e Taka, moldado pelo ressentimento. A construção dos dois personagens, lado a lado, é a espinha dorsal de uma história que vai além da simples rivalidade de irmãos, explorando questões de herança, destino e escolhas que marcam o futuro.


O filme é uma obra de grande apelo visual, com momentos de grande beleza e imersão. A câmera de Jenkins e seu diretor de fotografia, James Laxton, adota movimentos amplos e confiantes, capturando não só as paisagens deslumbrantes do continente africano como também as sutilezas emocionais dos personagens. A animação fotorrealista, que se manteve fiel ao estilo do remake de 2019, é aqui mais expressiva, conferindo aos animais uma gama emocional que vai além da rigidez observada no filme anterior. As expressões faciais dos leões são mais fluidas e dinâmicas, o que ajuda a criar uma conexão emocional com a audiência, algo que o remake de Favreau não alcançou completamente.


Apesar de ser uma história essencialmente sobre Mufasa, Mufasa: O Rei Leão também expande a mitologia do filme original, mergulhando mais fundo nos bastidores de personagens como Sarabi, Rafiki e, claro, Scar. A presença de um vilão como Kiros (Mads Mikkelsen), um leão branco que ameaça a paz do novo bando, traz à tona o conflito sobre lealdade, poder e vingança. A dinâmica entre Mufasa e Taka também abre discussões sobre os ciclos de violência e herança familiar, temas que já estavam presentes em Moonlight, mas agora contextualizados no universo de O Rei Leão.



Porém, o filme não é isento de falhas. O dispositivo de enquadramento, com a história sendo contada por Rafiki para a neta de Mufasa, Kiara, interrompe o fluxo emocional da narrativa principal. Embora tenha uma função lógica dentro da trama, essa estrutura acaba diluindo o ritmo da história e tornando os momentos de alívio cômico com Timão e Pumba um tanto deslocados. Suas piadas, muitas vezes sobre a Disney e sua própria fórmula, soam mais como uma crítica metalinguística desnecessária do que um genuíno alívio para o público.

Outro ponto a ser considerado é a música. Embora Lin-Manuel Miranda tenha contribuído com algumas faixas interessantes, a trilha sonora não chega a ter o mesmo impacto icônico das músicas de Elton John e Tim Rice do filme original. As novas canções são agradáveis, mas não possuem a mesma força emocional, com exceção de alguns momentos, como o dueto "Tell Me It's You", que se destaca pela energia e lirismo. 


No final das contas, Mufasa: O Rei Leão é um filme que, mesmo com suas imperfeições, consegue encantar tanto os fãs da obra original quanto aqueles que buscam uma visão mais profunda do universo de Simba e seus antecessores. Jenkins consegue manter a integridade emocional do legado de O Rei Leão enquanto infunde a história com sua própria marca autoral, enriquecendo o material com temas universais sobre família, destino e crescimento. É, portanto, uma prequela que não apenas complementa a história original, mas também a expande, trazendo um novo significado para uma das figuras mais amadas da animação.

CRÍTICA | Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa


O cinema nacional sempre soube abraçar o público infantil com filmes que se tornaram verdadeiros fenômenos nas férias, e Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa é a mais nova joia dessa tradição. O filme, que estreia já no início de 2025 nas telas de cinema, chega para emocionar e entreter uma nova geração de espectadores, enquanto reforça a relevância dos personagens de Mauricio de Sousa, mais especificamente o carismático Chico Bento, que agora ganha sua própria adaptação cinematográfica.


A história é simples, mas profundamente encantadora, e está repleta de elementos lúdicos que fazem jus à essência do universo criado por Mauricio de Sousa. O enredo, centrado na paixão de Chico pela goiabeira de Nhô Lau, é um convite à nostalgia e à reflexão sobre o meio ambiente. Quando a árvore ameaçada pela construção de uma estrada se torna o epicentro da narrativa, o filme aborda questões ambientais e sociais com uma delicadeza que conversa diretamente com o público jovem, sem perder a leveza que se espera de uma história infantil.


O grande trunfo da produção é o elenco, especialmente Isaac Amendoim, que interpreta o protagonista com uma naturalidade e carisma impressionantes. Sua performance como Chico Bento é repleta de frescor, e sua conexão com a câmera é tão orgânica que faz com que a experiência de assistir ao filme se torne quase uma extensão das histórias em quadrinhos. Ele consegue capturar a essência do personagem e transportá-la para o cinema de forma extremamente convincente e ainda quebra a quarta parede, fazendo jus à tradição do personagem que, com sua pureza e travessuras, conquista a todos.


A direção de Fernando Fraiha, brilha aqui ao criar uma atmosfera lúdica e calorosa, sem nunca perder o foco no coração da história: a amizade e a conexão com a natureza. A fotografia de Gustavo Hadba é um deleite visual, utilizando tons quentes para capturar a essência de uma vila rural onde a magia e a realidade se encontram de maneira harmônica. As cenas são encantadoras, e a forma como a iluminação evoca uma sensação de atemporalidade faz com que o filme transcenda a barreira entre o passado e o presente, remetendo aos quadrinhos de Chico Bento, mas com uma roupagem moderna.


O roteiro, escrito por Elena Altheman, Raul Chequer e o próprio Fernando Fraiha, combina perfeitamente a inocência do personagem com temas relevantes e contemporâneos, como a preservação ambiental e a luta contra o progresso desenfreado. O modo como as questões são abordadas sem didatismo, mas com uma sensibilidade própria das boas histórias infantis é um dos maiores acertos do filme. Através da trajetória de Chico e seus amigos para salvar a goiabeira, o público é convidado a refletir sobre o impacto de nossas ações no meio ambiente de maneira divertida e comovente.


Além disso, a participação de atores consagrados, como Luis Lobianco, Débora Falabella e Taís Araújo, acrescenta profundidade e emoção à trama, especialmente em suas cenas com Chico e sua turma, que equilibram humor e sensibilidade de forma primorosa. A construção de personagens secundários, como Zé Lelé, Rosinha e outros membros da comunidade, também é um ponto positivo, criando um rico universo de relações afetivas que torna o filme ainda mais encantador.


Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa é, sem dúvida, um filme imperdível para a temporada de férias. Com sua mistura de humor, ternura e crítica social, ele consegue entreter crianças e adultos ao mesmo tempo, provando que as histórias de Mauricio de Sousa ainda têm muito a oferecer. O filme é uma celebração da cultura pop nacional e reafirma o potencial do cinema brasileiro para criar aventuras que tocam o coração das pessoas. Não é apenas um filme para as férias, mas uma

verdadeira obra de arte que merece ser vista e revista por gerações de fãs.

05/12/2024

CRÍTICA | O SENHOR DOS ANÉIS: A GUERRA DOS ROHIRRIM


Após anos de explorações variadas da Terra média, "O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim" chega como uma promessa de retorno à essência épica de J.R.R. Tolkien, mas com uma roupagem distinta, dessa vez por meio da animação. Dirigido por Kenji Kamiyama, conhecido por suas obras como "Ghost in the Shell" e "Blade Runner: Black Lotus", o filme apresenta uma perspectiva nova sobre os Rohirrim, expandindo a mitologia com uma história independente, mas profundamente enraizada no universo de Tolkien.


Ambientado cerca de 200 anos antes dos eventos da trilogia original, o filme se concentra na ascensão do Rei Helm Hammerhand e os conflitos que levaram à construção do icônico Abismo de Helm. A narrativa é uma tragédia shakespeariana, onde os destinos de dois antigos amigos Héra e Wulf são devastados pela ambição e vingança. A trama de "A Guerra dos Rohirrim" mistura as intrigas políticas com batalhas épicas, fazendo uma conexão com as grandes batalhas da trilogia de Jackson, enquanto também apresenta novos personagens e conflitos.


A história, apesar de sua densidade emocional, mantém uma simplicidade acessível que a torna atraente tanto para os fãs mais dedicados de Tolkien quanto para os novatos. A trama explora de maneira cuidadosa as tensões entre os povos de Rohan e os Dunlendings, com personagens como Héra, a filha do Rei Helm, ganhando um papel central, algo que alguns podem achar controverso. A introdução de Héra como líder e guerreira destemida, contrastando com a tradição patriarcal da Terra média, pode causar estranheza para alguns fãs da obra original, que talvez preferissem uma adaptação mais fiel aos personagens e seu contexto histórico. O filme mexe com esse cânone ao apresentar Héra de forma mais independente e até um tanto egocêntrica, o que é um ponto de crítica, já que sua motivação e traje (particularmente sua armadura, vista como excessivamente moderna) acabam por quebrar a imersão no mundo de Tolkien.



Em termos visuais, o filme se destaca de maneira impressionante. Kamiyama adota uma combinação de animação 2D tradicional no estilo anime com cenários 3D realistas, criando uma estética única e deslumbrante. As cenas de batalhas, como o cerco a Edoras e o confronto no Abismo de Helm, são de uma beleza visual notável, com o dinamismo da animação trazendo um frescor ao universo conhecido. A arte remete aos visuais ricos dos filmes do "Spider-Verse", com um foco na qualidade estética que atrai tanto os fãs de anime quanto os apreciadores do estilo ocidental.


A música, embora aproveite o legado sonoro dos filmes de Jackson, se mantém fiel ao espírito da Terra média, com o tema de Rohan ressoando profundamente. Mas, apesar de sua força visual e sonora, o filme enfrenta desafios narrativos. A introdução de novos personagens e a apressada apresentação de suas motivações faz com que a profundidade emocional do enredo, especialmente nas grandes batalhas, se perca em alguns momentos. A tentativa de criar um novo protagonismo em Héra, ao desviar-se da figura clássica de Helm Hammerhand, é audaciosa, mas compromete o caráter épico e coletivo da história de Tolkien, focando demais em uma personagem que soa deslocada em um universo medieval tão intricadamente

construído.


Embora o filme seja uma excelente introdução à cultura dos Rohirrim e um espetáculo visual, ele também expõe os riscos de revisitar um legado tão poderoso de forma excessivamente modernizada. Para os fãs de Tolkien, "A Guerra dos Rohirrim" oferece uma aventura diferente, mas com nuances que podem desagradar os mais puristas.

02/12/2024

CRÍTICA | INEXPLICÁVEL


Dirigido por Fabrício Bittar, Inexplicável se apresenta como um melodrama que mistura os dilemas familiares com a temática da fé e da superação diante de uma tragédia. Baseado no livro “O menino que queria jogar futebol: uma história de fé e superação”, de Phelipe Caldas, o filme acompanha a história da família Varandas, que enfrenta a dor e a incerteza de um diagnóstico terminal do filho mais velho, Gabriel (Miguel Venerabile), de apenas oito anos. A trama, centrada na luta contra um tumor cerebral, explora as complexas relações familiares e a tensão entre ciência e fé.


O ponto forte do filme está na atuação do elenco, com Letícia Spiller e Eriberto Leão trazendo uma intensidade emocional à complexa dinâmica de Yanna e Marcus, pais que se veem forçados a fazer escolhas extremas para salvar a vida do filho. Yanna, uma mãe devota e profundamente religiosa, encontra na fé a força para lutar, enquanto Marcus, cético e descrente, se vê arrastado para esse universo que inicialmente rejeita. Essa dicotomia entre os dois personagens é o cerne do drama, e, em muitos momentos, parece que o filme força o espectador a refletir sobre os limites entre a fé e a razão.


A narrativa segue uma estrutura bem conhecida nos filmes de superação, marcada pela constante luta pela vida do personagem principal. O conflito de Yanna entre o cuidado com Gabriel e suas responsabilidades com o outro filho é uma das facetas mais humanas do filme, trazendo à tona a exaustão emocional e os sacrifícios de uma mãe. Essa situação se torna ainda mais difícil quando, ao mesmo tempo, ela lida com a gravidez e a constante sensação de culpa por não poder dar atenção suficiente ao filho mais novo.


No entanto, o ponto que mais pode dividir opiniões é a forma como o filme aborda a fé. Enquanto Yanna é mostrada como alguém que vê em Deus a única esperança, Marcus, o pai, se opõe a essa visão, tratando com sarcasmo e ironia as tentativas de oração e o discurso religioso. A conversão do personagem de Eriberto Leão, que, eventualmente, passa a acreditar em Deus como solução para a cura do filho, soa quase como uma imposição do roteiro, que se apoia em uma visão simplificada de que a fé pode sobrepor os avanços da medicina. A frase "não acreditar é tão louco quanto acreditar", embora impactante, acaba servindo como um ponto de virada quetransforma a trama em um questionamento moral sobre o quanto a vida e a morte estão interligadas ao acreditar ou não em um poder superior.



O dilema central do filme o questionamento sobre a relação entre ciência e fé poderia ser mais explorado com mais nuances. A transformação de Marcus, que passa de um ateu cético a um homem de fé, embora compreensível dentro da lógica do drama, acaba parecendo um tanto forçada e previsível. Isso pode fazer com que o filme perca um pouco de sua força emocional ao se concentrar em temas mais transcendentais, como a salvação divina, em vez de aprofundar a luta pessoal e familiar pela sobrevivência de Gabriel de forma mais universal.


Visualmente, o filme não se destaca de maneira marcante, mantendo uma fotografia simples e eficaz, que foca mais nas expressões e reações dos personagens do que em grandes cenas de ação ou momentos grandiosos. A edição e a montagem também contribuem para o ritmo tenso, alternando entre cenas de esperança e desespero, com uma ênfase no sofrimento físico e emocional de Gabriel e seus pais.


Inexplicável é um drama emocional que pode tocar aqueles que buscam uma história de superação e fé, mas sua abordagem, muitas vezes, peca pela previsibilidade e pela ênfase excessiva nos aspectos religiosos, deixando de lado uma exploração mais profunda das complexidades humanas e científicas envolvidas em uma situação de vida ou morte. O filme parece se apoiar em uma visão dicotômica de fé e razão, onde a única resposta para a cura é a crença em um poder superior, algo que pode não ressoar com todos os espectadores, especialmente aqueles que buscam uma abordagem mais equilibrada e realista sobre os desafios enfrentados por famílias em situações de crise, porém é um filme super emocionante.