23/02/2025

CRÍTICA | PEQUENAS COISAS COMO ESTAS


Pequenas coisas como estas, dirigido por Tim Mielants e estrelado por Cillian Murphy, é um drama silencioso, mas devastador, sobre culpa, cumplicidade e coragem diante das atrocidades das “Lavanderias Madalena” na Irlanda. Baseado no romance de Claire Keegan, o filme não apenas revisita um dos episódios mais sombrios da história irlandesa, mas também captura, com precisão cirúrgica, o peso do silêncio coletivo que permitiu que esse sistema opressor prosperasse por tanto tempo.

Ambientado no início dos anos 1980, o filme acompanha Bill Furlong (Cillian Murphy), um carvoeiro simples e trabalhador, cuja rotina de Natal com sua esposa Eileen (Eileen Walsh) e suas cinco filhas é interrompida quando ele testemunha uma cena perturbadora em um convento local. Lá, meninas jovens, aterrorizadas e maltratadas, são forçadas a trabalhar em condições desumanas. Ao se deparar com uma dessas vítimas trancada no galpão de carvão, machucada e desesperada, Bill se vê confrontado com a verdade que todos na cidade conhecem, mas fingem não enxergar.

O dilema central do filme está na reação de Bill: denunciar o que viu e arriscar o futuro de suas próprias filhas ou se calar, como tantos antes dele? A luta interna do protagonista é magistralmente interpretada por Cillian Murphy, que transmite um turbilhão emocional apenas com olhares e gestos contidos. Seu Bill é um homem assombrado, incapaz de ignorar a dor alheia, mas igualmente consciente das consequências de suas ações em uma sociedade onde a Igreja tem poder absoluto.

Murphy entrega uma de suas performances mais intensas e sutis, capturando o conflito moral de um homem comum diante de uma injustiça brutal. Sua interpretação é complementada por Emily Watson, no papel da implacável Irmã Mary, cuja frieza burocrática e ameaças veladas fazem dela uma antagonista aterrorizante. Eileen Walsh, por sua vez, traz camadas de complexidade à esposa de Bill, representando a mentalidade coletiva que perpetuava o sistema, o medo e a aceitação silenciosa da ordem estabelecida.


Tim Mielants conduz o filme com uma abordagem minimalista e intimista, utilizando planos fechados e composições discretas para enfatizar a opressão psicológica. Há um uso estratégico de panorâmicas de 360º, que reforçam a sensação de um mundo fechado sobre si mesmo, onde todos estão presos a regras não ditas.

Desde o início, os sinos da igreja ecoam pela cidade, marcando a presença onipresente da Igreja Católica. Quando tocam no desfecho do filme, já não representam um chamado à fé, mas um lembrete assustador de um sistema que vigia e pune aqueles que ousam desafiar sua autoridade.

O silêncio, por sua vez, é um personagem invisível na narrativa. Ele permeia as casas, as ruas e as interações entre os habitantes da cidade. Todos sabem o que acontece nas Lavanderias Madalena, mas preferem não falar, perpetuando um ciclo de abusos que só terminaria na década de 1990.

Pequenas Coisas Como Estas é um filme poderoso e essencial, que expõe não apenas as atrocidades cometidas nas “Lavanderias Madalena”, mas também o peso da omissão e da cumplicidade social. Com atuações impecáveis e uma direção cuidadosa, o longa se estabelece como um dos mais impactantes do ano, lembrando-nos de que o verdadeiro heroísmo, muitas vezes, está nas pequenas ações de coragem contra sistemas implacáveis.

21/02/2025

CRÍTICA | UM COMPLETO DESCONHECIDO


Um completo desconhecido, dirigido por James Mangold, é um filme biográfico que foge da tradicional abordagem deste gênero, para focar em um momento crucial na vida de Bob Dylan. O longa captura a interseção entre arte e fama, explorando a evolução do cantor no início dos anos 1960 e culminando em sua controversa apresentação eletrificada no Newport Folk Festival de 1965.

Bob Dylan já foi objeto de diversas abordagens cinematográficas, desde o experimental I'm Not There (2007), de Todd Haynes, até documentários como Don't Look Back (1967), de D.A. Pennebaker. O que diferencia "Um Completo Desconhecido" é sua ênfase na transformação artística do músico e nos dilemas que ele enfrentou ao desafiar as expectativas do movimento folk.

O filme se inicia com Dylan (Timothée Chalamet) visitando Woody Guthrie (Scoot McNairy) no hospital, um momento simbólico que estabelece a passagem de bastão entre gerações. A partir daí, acompanhamos sua ascensão no circuito folk de Nova York, seus relacionamentos tumultuados com Sylvie Russo (Elle Fanning) e Joan Baez (Monica Barbaro), e sua amizade com ícones como Pete Seeger (Edward Norton) e Johnny Cash (Boyd Holbrook).

Timothée Chalamet entrega uma performance hipnótica, capturando a insolência, o carisma e o mistério de Dylan sem transformá-lo em uma caricatura. Mais do que apenas imitar maneirismos, o ator transmite a energia criativa do músico, especialmente em cenas de performance ao vivo, onde ele mesmo canta. Sua interpretação de The Times They Are A-Changin’ recria a sensação de novidade e impacto que a música teve em sua estreia.

O elenco de apoio é igualmente forte, Monica Barbaro faz uma Joan Baez perfeita, revelando tanto sua admiração quanto sua frustração com Dylan. Edward Norton traz uma presença sutil, mas marcante, como Seeger, um mentor dividido entre apoiar a inovação e preservar as tradições do folk.


James Mangold, que já dirigiu cinebiografias musicais como Johnny & June (2005), evita os clichês do gênero ao estruturar o filme como uma jornada de descoberta e rebeldia. O roteiro, co-escrito por Mangold e Jay Cocks, não tenta explicar Dylan, mas sim apresentar os eventos que moldaram sua trajetória, deixando espaço para o público interpretar suas motivações.

A montagem incorpora imagens de arquivo e eventos históricos para contextualizar a música de Dylan, como a crise dos mísseis cubanos, servindo de pano de fundo para “Masters of War”. Essa abordagem reforça o impacto social da obra do cantor sem recorrer a exposições óbvias.

"Um Completo Desconhecido" explora o choque entre tradição e inovação, individualidade e expectativas do público. A transição de Dylan para o som elétrico não é apenas uma escolha musical, mas um ato de afirmação artística contra as limitações impostas por fãs e críticos.

O filme também reflete sobre a relação entre arte e identidade. Dylan é retratado como um mestre da reinvenção, alguém que nunca se encaixa completamente nas categorias que tentam impor a ele. Sua recusa em ser rotulado o torna um ícone inquieto, sempre à deriva entre gêneros e influências.

"Um Completo Desconhecido" é uma cinebiografia que, assim como seu protagonista, desafia convenções e evita respostas fáceis. Com uma abordagem mais sensorial do que explicativa, Mangold entrega um filme vibrante e cheio de energia, impulsionado por uma performance inexplicável de Timothée Chalamet. Para fãs de Dylan e amantes de música, esta é uma experiência essencial, que captura a essência de um artista que marcou esse mundo.

14/02/2025

CRÍTICA | O BRUTALISTA


O Brutalista, dirigido por Brady Corbet, é uma obra ambiciosa que mistura arquitetura, imigração, antissemitismo e as contradições do capitalismo americano em um épico momento cinematográfico. Com um tempo de execução extenso, de mais de três horas e meia, e filmado em VistaVision, o longa se posiciona como uma grande saga sobre um arquiteto húngaro sobrevivente do Holocausto que busca recomeçar nos Estados Unidos.

A história acompanha László Tóth (Adrien Brody), um arquiteto judeu que chega à Filadélfia nos anos 1940, tentando reconstruir sua vida e carreira. Ele encontra apoio inicial em seu primo Átila (Alessandro Nivola), mas logo percebe que a assimilação não é tão simples, especialmente em um país onde o antissemitismo e as hierarquias sociais ainda são barreiras intransponíveis.

A grande virada na vida de Tóth acontece quando ele conhece o excêntrico magnata Harrison Van Buren (Guy Pearce), que se torna seu patrono e o encarrega de projetar um centro comunitário. No entanto, o que começa como uma oportunidade para Tóth expressar sua visão arquitetônica rapidamente se transforma em um jogo de poder, exploração e controle, onde sua arte é constantemente submetida aos caprichos de um benfeitor narcisista.

Enquanto isso, Erzsébet (Felicity Jones), a esposa de Tóth, e sua sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy) ficam presas na Europa devido a entraves burocráticos, adicionando um elemento de sofrimento emocional que permeia toda a narrativa.


Adrien Brody entrega uma de suas melhores performances desde “O Pianista”. Seu personagem Tóth é um homem marcado pelo trauma, mas ainda apaixonado por sua arte. Brody equilibra fragilidade e determinação de forma magistral, tornando sua jornada tanto inspiradora quanto dolorosa.

Guy Pearce brilha como Van Buren, capturando o arquétipo do mecenas poderoso que oscila entre a generosidade e a crueldade. Seu personagem lembra figuras obscuras, mas com uma camada extra de imprevisibilidade e perversidade.

Felicity Jones, apesar de seu talento, recebe um papel subdesenvolvido, surgindo tardiamente na trama e sem grande impacto na narrativa. Já Joe Alwyn, como o filho de Van Buren, representa a nova geração da elite americana, arrogante e despreparado para lidar com a grandiosidade do projeto que seu pai patrocina.

Brady Corbet cria um filme que é visualmente impressionante, com uma cinematografia meticulosa assinada por Lol Crawley. O uso de VistaVision dá ao filme uma grandiosidade raramente vista no cinema contemporâneo, e a direção de arte transforma cada cena em um espetáculo arquitetônico.


A trilha sonora de Daniel Blumberg, com tons épicos e melancólicos, complementa o peso emocional da história, enquanto o design de som enfatiza a grandiosidade e a brutalidade do mundo em que Tóth está inserido.

O Brutalista não é apenas sobre arquitetura, mas sobre os desafios da imigração, os dilemas do artista diante do capitalismo e a luta entre individualidade e coletividade. A relação entre Tóth e Van Buren simboliza o conflito entre criação e apropriação, onde a visão artística é constantemente comprometida pelos interesses financeiros e políticos.

Além disso, a escolha do brutalismo como estética reflete a dureza do mundo pós-guerra e a resistência dos sobreviventes. A arquitetura concreta, imponente e austera de Tóth se torna um reflexo de sua própria luta por identidade e reconhecimento.

O Brutalista é uma obra cinematográfica imponente e desafiadora. Com um ritmo deliberado e um escopo épico, o filme exige paciência, mas recompensa o espectador com uma experiência visual e emocional única. Não é um filme fácil ou acessível para todos e deixa muitas pontas soltas, mas para aqueles que apreciam narrativas densas e reflexivas, ele se estabelece como um dos filmes mais ambiciosos do ano que provavelmente fará história no Oscar 2025 e quanto ao longo tempo o filme possui um diferencial nesse quesito um intervalo entre os atos.

13/02/2025

CRÍTICA | Bridget Jones: Louca pelo Garoto


A cada novo filme da franquia Bridget Jones, a personagem de Renée Zellweger se reafirma como um ícone das comédias românticas, mas também como um reflexo das complexas questões da mulher moderna. Bridget Jones: Louca pelo Garoto, o quarto filme da saga, traz uma visão mais madura e densa da personagem, dando continuidade ao legado iniciado em 2001. Porém, enquanto o tom do filme se torna mais sério, as questões subjacentes sobre as expectativas sociais, o luto e a busca por amor se mantêm centrais, como uma marca registrada da franquia.

A principal mudança no enredo é o luto que permeia a vida de Bridget. Após a morte de seu amado Mark Darcy (Colin Firth), vítima de um acidente em uma missão humanitária, Bridget se vê desamparada, tentando reconstruir sua vida enquanto cuida de seus dois filhos. O filme explora a dor da perda, mas também o desafio de se reinventar após um golpe tão devastador. Esse tema de luto é executado com sensibilidade e, para muitos, poderá ser o grande trunfo do filme, apresentando uma Bridget mais introspectiva e menos caótica.


O que ainda se mantém é a famosa tensão romântica que permeia a franquia, agora mais interessante pela introdução de dois novos interesses amorosos: um jovem, flertador (Leo Woodall) e um professor de ciência, com um ar mais sensato (Chiwetel Ejiofor). A relação entre Bridget e esses novos personagens, especialmente a diferença de idade entre ela e Roxster (Leo Woodall), entra no radar de uma tendência cinematográfica recente de romances com uma mulher mais velha e um homem mais jovem, assim como o recente “Baby Girl”. Essa dinâmica é bem explorada e atualiza a fórmula já conhecida da franquia, mantendo a essência do que faz Bridget ser tão querida: sua autenticidade e vulnerabilidade.

A ausência de Mark Darcy e a ressurreição de Daniel Cleaver (Hugh Grant) trazem o tom de comédia leve de volta ao filme, com o charme irreverente de Cleaver sendo um contraste necessário para os momentos mais emocionais. Ainda que o personagem de Hugh Grant tenha um tom de nostalgia, ela também serve como um alívio para os momentos de intensidade dramática que surgem com o luto de Bridget.

É interessante notar a mudança no tom do filme. O diretor Michael Morris, conhecido por seu trabalho em dramas, trouxe uma sensibilidade mais sombria e realista ao filme, especialmente no que diz respeito à forma como Bridget lida com seus próprios sentimentos e com o processo de aceitar que a vida não se desenrola como o esperado. O filme, ao contrário de suas sequências anteriores, não é apenas uma comédia romântica descontraída, mas uma reflexão sobre crescimento, perda e a busca de autossuficiência.


Porém, é importante ressaltar que o filme não está imune às críticas que sempre acompanharam a personagem. Alguns pontos na franquia mostraram que Bridget representa um modelo antiquado de feminilidade, com sua obsessão por seu peso, sua busca constante por um romance idealizado e seu papel passivo em algumas situações. Contudo, a proposta do filme parece ser justamente a subversão dessa ideia, Bridget agora está ciente das suas falhas, e a trama não a apresenta mais como uma vítima da sociedade, mas sim como uma mulher que está aprendendo a lidar com as dificuldades da vida de forma mais equilibrada.

Bridget Jones: Louca pelo Garoto é uma espécie de tônico facial para quem busca um alívio emocional e uma celebração da imperfeição. A personagem se reinventa, mas sem perder sua essência. Embora o filme não seja uma revolução no gênero, ele faz jus à longa trajetória da personagem, trazendo uma mistura de comédia, drama e romance que certamente agradará aos fãs mais fieis. O filme é uma homenagem àqueles que cresceram com Bridget, mas também oferece uma nova perspectiva para uma geração mais jovem, que talvez veja na sua caótica busca por identidade algo mais atemporal do que nunca.

CRÍTICA | Capitão América: Admirável Mundo Novo


Capitão América: Admirável Mundo Novo, chega aos cinemas como uma peça fundamental para o futuro do MCU. Assumindo o protagonismo após o legado de Steve Rogers, Sam Wilson (Anthony Mackie) enfrenta a difícil tarefa de ser o novo Capitão América, agora no centro de um enredo que mistura dilemas pessoais com questões políticas globais. O filme faz um trabalho interessante de transição para o novo herói, mas também leva o espectador a refletir sobre as consequências de um governo controlando super-heróis, criando tensões entre personagens como Wilson e o presidente Thaddeus "Thunderbolt" Ross (Harrison Ford).

A trama segue o Capitão América Sam Wilson sendo convocado pelo presidente Ross para reorganizar os Vingadores, agora sob uma perspectiva mais governamental. A relação entre Sam e Ross, que antes separou os Vingadores com os Acordos de Sokovia, é repleta de tensões políticas e éticas. A mudança de Ross, de um político implacável para um estadista buscando redenção, é uma escolha ousada, que adiciona complexidade à história. Porém, algumas transições de personagens, como o próprio Ross, poderiam ser mais exploradas para dar maior profundidade ao arco dramático.


Julius Onah, o diretor, trabalha com um enredo que reflete questões contemporâneas, colocando Sam Wilson como um líder que não só herdou o manto de Capitão América, mas também as dificuldades de ser um símbolo de liderança em tempos de polarização política e social. O filme não foge da atualidade ao abordar temas como a responsabilidade do poder e o dilema de usar super poderes em prol de um interesse governamental.

Do ponto de vista emocional, "Admirável Mundo Novo" funciona muito bem, especialmente em momentos em que Sam enfrenta suas próprias dúvidas sobre sua capacidade de liderar, refletindo um lado mais humano do herói. É impossível não sentir que a jornada de Wilson está em busca de um reconhecimento completo de sua identidade, tanto para ele quanto para o público. No entanto, o filme poderia ter se aprofundado mais nos desafios internos de Sam, além de mostrar apenas o processo de adaptação a um papel imposto.  

A introdução de um "Adamantium arms race" e o foco na descoberta de um novo metal poderoso parecem preparar o palco para futuras ameaças, mas a escolha de subtramas como essa acaba sendo secundária, deixando o desenvolvimento da equipe dos Vingadores em um plano mais distante. O foco maior é na construção do personagem e em sua relação com o legado de Steve Rogers, que ainda paira sobre o enredo.


A interpretação de Mackie como Sam Wilson, agora totalmente incorporado ao papel de Capitão América, traz um frescor necessário ao MCU. Seu personagem tem um apelo emocional que reflete suas lutas internas e seu compromisso com a justiça, apesar dos desafios que surgem, seja de seu próprio ego ou de pressões externas. Já Harrison Ford, como Ross, entrega uma performance robusta, mas seu personagem poderia ter sido mais bem desenvolvido dentro da narrativa política do filme.

Visualmente, o filme não decepciona. A direção de arte e os efeitos especiais criam cenas de ação interessantes, apesar de poucas, mantendo a intensidade das batalhas características do MCU. No entanto, a trama peca por sua estrutura previsível. A montagem de novos Vingadores e o relacionamento entre Sam e as novas figuras de autoridade, como Ross e John Walker (Wyatt Russell), são elementos que criam um clima de expectativa, mas deixam algumas lacunas narrativas que poderiam ser mais bem exploradas.

"Capitão América: Admirável Mundo Novo" não é apenas a passagem do escudo para um novo líder, mas um reflexo das incertezas de um universo que ainda busca seu rumo. Sam Wilson carrega o peso de um legado gigante, e o filme faz questão de mostrar que ser o Capitão América vai além de vestir o uniforme – é sobre enfrentar dilemas que não se resolvem com um simples arremesso de escudo. Embora nem todas as apostas se concretizem e algumas tramas fiquem à margem, o longa estabelece um novo paradigma para o MCU e abre caminho para um futuro onde o heroísmo não se define apenas pela força, mas pelas escolhas que moldam um mundo em transformação.

05/02/2025

CRÍTICA | Flow


Flow, do diretor Gints Zilbalodis, é uma animação sem diálogos que transforma um conto de sobrevivência animal em uma alegoria sobre empatia, colaboração e a resiliência da natureza diante da extinção. Com um estilo visual hipnotizante e um ritmo contemplativo, o filme mistura realismo e fantasia para criar uma experiência cinematográfica singular e profundamente filosófica.

A história acompanha um gato preto que, isolado após uma inundação de proporções apocalípticas, encontra um grupo improvável de companheiros: um labrador, um lêmure, uma capivara e um pássaro secretário. Juntos, eles precisam aprender a coexistir enquanto navegam pelas águas que engoliram as estruturas humanas, sugerindo um mundo pós-humanidade onde a natureza lentamente reivindica seu espaço.

Sem diálogos, "Flow" confia exclusivamente na linguagem visual e sonora para comunicar sua narrativa. O filme enfatiza os gestos sutis dos personagens, desde um simples esfregar de narizes até a tensão latente em momentos de conflito. A ausência de falas força o espectador a observar atentamente e interpretar as emoções e dinâmicas sociais entre os animais, o que amplia o impacto da mensagem sobre conexão e pertencimento.


O trabalho visual de Zilbalodis impressiona por sua fluidez e naturalidade. A câmera virtual desliza pelos cenários com um movimento contínuo e orgânico, criando a ilusão de que os eventos acontecem em tempo real. Essa abordagem remete à cinematografia dos planos-sequência, dando ao filme um tom meditativo que captura tanto a solidão do protagonista quanto a grandiosidade do ambiente ao seu redor.

A estética gráfica estilizada dos personagens contrasta com os cenários ricos em detalhes, uma escolha que impede o filme de cair no hiper-realismo sem alma de algumas animações contemporâneas. A iluminação, a textura da água e a vegetação são renderizadas com um realismo pictórico impressionante, reforçando a sensação de um mundo em transformação.

No entanto, a animação dos personagens às vezes carece de peso e profundidade, resultando em movimentos que podem parecer artificiais, especialmente quando os animais interagem com o ambiente. Isso pode afastar espectadores que esperam um realismo mais sofisticado no design dos personagens, mas, no contexto da proposta artística do filme, essa abordagem estilizada faz sentido.

"Flow" não apenas narra uma jornada física, mas também uma jornada emocional e filosófica. A metáfora da água como agente de mudança e renovação sugere tanto destruição quanto recomeço, refletindo questões ambientais contemporâneas. A presença de ruínas humanas submersas, incluindo uma cidade que se tornou lar de uma baleia majestosa, reforça a ideia da insignificância das ambições humanas diante da força da natureza.



Além disso, a trajetória do gato, de um solitário desconfiado para um membro de uma comunidade interdependente, reflete um comentário sobre individualismo versus coletividade. A cena inicial, onde o gato se vê sozinho em uma poça d’água, e a cena final, onde ele e seus companheiros compartilham um reflexo coletivo, simbolizam essa evolução de forma visualmente poética.

A trilha sonora minimalista, co-composta por Zilbalodis e Rihards Zaļupe, complementa perfeitamente a narrativa silenciosa, alternando entre momentos de tensão e tranquilidade. A paisagem sonora é cuidadosamente construída para enfatizar a imersão no mundo natural, usando ruídos sutis como o farfalhar das folhas, o balanço da água e os chamados distantes de animais.

"Flow" é uma experiência cinematográfica única que desafia as convenções narrativas ao apostar na força da animação como meio de expressão pura. Embora possa parecer lento para espectadores acostumados a ritmos mais acelerados, sua beleza visual, sua mensagem universal e sua abordagem inovadora fazem dele um dos filmes de animação mais singulares do ano.

CRÍTICA | Sing Sing



"Sing Sing", dirigido por Greg Kwedar, é um filme intrigante e poderoso que desafia as convenções dos dramas carcerários ao explorar o impacto transformador da arte. Inspirado no programa real Rehabilitation Through the Arts (RTA), que oferece teatro para presidiários da unidade de segurança máxima de Sing Sing, o filme mistura ficção e realidade ao escalar ex-detentos no elenco e construir uma narrativa profundamente humanizada.

O filme acompanha John “Divine G” Whitfield (Colman Domingo), um homem condenado injustamente que se tornou peça-chave no programa de teatro da prisão. Ele encontra uma nova motivação ao conhecer Clarence “Divine Eye” Maclin (interpretado pelo próprio ex-presidiário Clarence Maclin), um novato no grupo que traz uma energia inquieta e desafiadora. O relacionamento entre os dois forma o coração do filme, onde o teatro não é apenas uma distração da brutalidade do sistema carcerário, mas um caminho para a reconstrução da identidade e da dignidade.


A chegada de Divine Eye gera atritos no grupo, especialmente quando ele questiona a predominância do drama nas peças e propõe algo mais leve e escapista. O resultado é uma peça original, Breakin’ The Mummy’s Code, uma mistura de comédia e teatro clássico que se torna um símbolo de liberdade e expressão para os detentos. O filme acompanha os ensaios e as dificuldades emocionais do elenco, culminando na noite de estreia, um momento de catarse e transformação para os personagens.

Colman Domingo entrega uma das performances mais memoráveis do ano, trazendo profundidade e carisma para Divine G. Seu amor pelo teatro é genuíno, e sua interpretação do monólogo de Hamlet ressoa como um grito silencioso por liberdade. No entanto, seu personagem, apresentado como um mentor quase místico e imaculado, destoa um pouco do tom realista do restante do elenco, especialmente em comparação com Clarence Maclin, cuja atuação crua e autêntica reforça o impacto do filme.

Paul Raci, indicado ao Oscar por “O Som do Silêncio”, interpreta Brent Buell, o coordenador do programa de teatro. Sua atuação discreta, mas firme, equilibra os momentos de tensão e permite que os detentos brilhem no palco. Greg Kwedar adota uma estética quase documental, permitindo que as cenas se desenrolem com naturalidade e espontaneidade. Há uma clara influência do realismo britânico, onde o improviso e a observação detalhada substituem as narrativas rigidamente estruturadas de Hollywood. O resultado é uma experiência cinematográfica marcante, que se recusa a cair nos clichês do "filme de redenção" e mantém um compromisso admirável com a autenticidade.


A fotografia de Pat Scola (Um Lugar Silencioso: Dia Um) contribui para essa sensação de realismo, com uma paleta de cores sóbria e uma câmera que captura os momentos íntimos dos detentos sem glamourizá-los. A trilha sonora de Bryce Dessner (The National) e da London Contemporary Orchestra adiciona camadas emocionais sutis, sem recorrer a manipulações sentimentais.

Mais do que um filme sobre a prisão, "Sing Sing" é um testamento ao poder da arte como ferramenta de transformação. A presença de um elenco formado majoritariamente por ex-presidiários reforça essa mensagem, tornando a obra um exemplo vivo daquilo que ela representa. A decisão de incluir o verdadeiro Divine G em uma participação especial adiciona ainda mais camadas à experiência.

Apesar de seu tom impactante, o filme não ignora as realidades brutais do sistema prisional. Há momentos de tensão, injustiça e desespero, mas a abordagem de Kwedar evita o sensacionalismo e opta por um olhar mais humanista.

02/02/2025

CRÍTICA | Fé para o Impossível


Fé para o Impossível, dirigido por Ernani Nunes, é um drama inspirador baseado em fatos reais que narra a impressionante história de Renée Murdoch, uma mulher brutalmente atacada enquanto corria na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O filme busca não apenas relatar o trágico episódio, mas também destacar a força da fé, a resiliência e o poder da união em momentos de adversidade. 

A trama acompanha Renée (Vanessa Giácomo), mãe de quatro filhos e esposa do pastor Philip Murdoch (Dan Stulbach). Após o ataque, ela entra em coma e passa a lutar pela vida, enquanto Philip mobiliza uma corrente de orações e apoio da comunidade. O filme enfatiza a importância da fé e do suporte emocional coletivo, mostrando como a divulgação da história nas redes sociais gerou engajamento e esperança para a família.

O roteiro, apesar de eficiente em transmitir emoção, peca em alguns momentos por tornar Philip uma figura rígida e impositiva, especialmente no início. Sua insistência para que todos mantenham uma perspectiva positiva, mesmo diante da incerteza, pode soar como autoritarismo. Felizmente, o filme reconhece essa falha ao longo da narrativa e permite uma evolução do personagem, com destaque para uma cena crucial em que sua filha Júlia (Júlia Gomes) o confronta, mostrando a importância de aceitar e expressar emoções como tristeza e medo.

Vanessa Giácomo brilha nas cenas mais dramáticas, especialmente quando sua personagem desperta do coma e passa por surtos psicóticos. Sua interpretação traz realismo e peso emocional ao filme. Dan Stulbach, por sua vez, transmite bem a fé e a determinação de Philip, ainda que, em certos momentos, seu personagem pareça excessivamente rígido.


O elenco infantil também merece destaque, com Júlia Gomes, Theo Medon, Bella Alelaf e Arthur Biancato trazendo autenticidade às angústias e conflitos dos filhos do casal. Entre os coadjuvantes, Juliana Alves, no papel da médica responsável pelo tratamento de Renée, e Ricardo Oshiro, como o doutor Caíque, entregam atuações marcantes.

Ernani Nunes conduz a história com sensibilidade, equilibrando bem os momentos de tensão e emoção. A cinematografia é funcional, sem grandes ousadias visuais, mas eficaz em reforçar o tom intimista do filme. A trilha sonora acompanha a narrativa de maneira competente, intensificando os momentos de angústia e esperança e se conectando com a atualidade, através de canções recentes, sendo conectadas com o caso que ocorreu há mais de 10 anos.

Como ocorre em muitos filmes cristãos, "Fé para o Impossível" tem um forte apelo emocional e um tom edificante. A mensagem sobre fé e milagres é transmitida de forma clara, tornando-se o ponto central da obra. No entanto, o filme se diferencia por não apenas focar na crença em Deus, mas também na importância do apoio comunitário e da expressão genuína dos sentimentos.

Apesar de não trazer inovações narrativas e de ocasionalmente recorrer a certos clichês do gênero, o longa consegue emocionar o espectador, cumprindo seu propósito de inspirar e transmitir esperança.