21/08/2025

crítica | Anônimo 2


A sequência "Anônimo 2" segue a fórmula do primeiro filme, mas peca ao não conseguir capturar a mesma energia e surpresa que tornaram seu antecessor um sucesso inesperado. A trama, mais focada na vida doméstica de Hutch Mansell, protagonizado por Bob Odenkirk, expande a premissa de um homem comum que se revela um assassino imbatível. A ideia de um herói cômico, travado em uma vida suburbana e ao mesmo tempo imerso em um mar de violência, ainda rende bons momentos, mas a sequência acaba caindo em um ciclo de previsibilidade.

Hutch, mais uma vez, se vê no meio de um turbilhão de violência após tentar pagar uma dívida contraída com uma organização secreta, o que o leva a uma pequena cidade dominada por criminosos, onde ele tenta aproveitar um raro momento de férias com a família. Mas, como não poderia deixar de ser, a cidade está longe de ser o refúgio tranquilo que ele imagina. O problema dessa premissa é que, ao invés de explorar a luta interna de Hutch em conciliar sua vida de assassino com o papel de pai e marido, o filme acaba se repetindo, e o conflito perde o frescor.


A direção de Timo Tjahjanto aposta em uma violência ainda mais caricata e exagerada do que no primeiro filme. Se a brutalidade de "Anônimo" já se destacava por sua intensidade, a continuação leva isso a um nível mais absurdamente gráfico, em cenas que beiram o cartunesco. A violência desenfreada parece ter sido ampliada para chocar o espectador, mas, ao fazê-lo, perde o charme mais cru e impactante da obra original. A tentativa de alavancar a ação para um nível mais absurdo parece uma tentativa de se distanciar do tom mais realista do primeiro filme, mas o resultado é uma experiência que se sente forçada e um tanto insustentável.

Bob Odenkirk, por outro lado, ainda é a alma do filme. Sua habilidade em transitar entre o homem comum e o assassino impiedoso segue sendo seu maior trunfo. Há algo de genuíno em sua performance, principalmente em momentos em que Hutch tenta evitar a violência, mas acaba se vendo obrigado a recorrer à sua habilidade mortal. Odenkirk faz o possível para dar humanidade ao personagem, mas o filme não oferece mais camadas ou desafios interessantes para ele explorar. Mesmo em suas cenas de ação, ele parece cansado, como se estivesse apenas cumprindo um roteiro que já não oferece mais o mesmo entusiasmo.


A introdução de personagens como o de Sharon Stone, no papel da vilã Lendina, poderia ter trazido uma nova dinâmica ao enredo, mas sua atuação exagerada e forçada não consegue trazer a tensão necessária para equilibrar a comédia do filme. Stone parece querer criar uma personagem com o poder de um monstro, mas seu desempenho acaba se tornando um tanto deslocado. Já a inclusão de Colin Hanks como o xerife da cidade e o retorno de Christopher Lloyd e The RZA como figuras familiares de Hutch adicionam algum carisma à trama, mas sem impactar de fato a narrativa central.

Anônimo 2 não é uma continuação ruim, mas é um filme que falha em aproveitar o potencial que o primeiro abriu. A fórmula, que funcionava na sua simplicidade, se perde ao tentar ampliar a violência e os conflitos, mas sem trazer algo de realmente novo para a mesa. O filme acaba se tornando uma espécie de "nada demais", algo que se repete sem o frescor e a irreverência que marcaram a estreia de Hutch Mansell.

crítica | A Vida de Chuck



A Vida de Chuck, dirigido por Mike Flanagan, é uma experiência cinematográfica rara que desafia categorizações fáceis, misturando elementos de ficção científica, drama e uma boa reflexão existencial com uma narrativa emocionalmente carregada. Baseado em uma novela de Stephen King, esta adaptação se apresenta como uma ousada exploração sobre a vida, a morte e o passar do tempo, contada através de uma estrutura fragmentada e não cronológica, como uma sinfonia. É um filme que deixa o público com mais perguntas do que respostas, mas de uma forma que convida à introspecção, e não à frustração.

A escolha de Flanagan de narrar o filme de forma inversa, começando pelo fim da vida de Chuck Krantz e voltando para a sua infância, permite que o público reúna lentamente o significado do homem no centro da história. A interpretação de Tom Hiddleston de Chuck, que aparece em várias fases de sua vida, é marcada por uma dignidade silenciosa e um pathos contido. É uma performance que ressoa de maneira mais profunda à medida que o filme revela lentamente a complexidade de seu personagem e o impacto que ele teve na vida das pessoas ao seu redor.

O primeiro movimento, ambientado em um mundo à beira do colapso, nos apresenta a uma sociedade que desmorona lentamente. Desastres se acumulam, as mudanças climáticas devastam o meio ambiente, a internet e a eletricidade desaparecem, e os fios que sustentam a civilização começam a se desgastar. No entanto, em meio ao caos, a figura de Chuck aparece em painéis publicitários misteriosos, sendo celebrada por “39 grandes anos”, embora ninguém saiba exatamente por quê. Essa presença enigmática alimenta boa parte da intriga do filme, preparando o terreno para as conversas reflexivas que se seguem, especialmente entre os dois personagens, Marty (Chiwetel Ejiofor) e Felicia (Karen Gillan), cujo tal diálogo ancora a primeira parte do filme. A atmosfera é impregnada com uma quietude sombria, pontuada por momentos de humor, que refletem a habilidade de Flanagan de equilibrar a escuridão com a humanidade.


À medida que a narrativa passa para o seu movimento intermediário, o filme toma um rumo surpreendente e mais leve. Uma dança espontânea entre Chuck e uma jovem desiludida (Annalise Basso) se torna o centro inesperado da história, uma explosão de alegria diante da incerteza. É um momento de vida vivida ao máximo, abraçando a natureza efêmera da existência. A cena é lindamente coreografada, com um ritmo que espelha os temas mais profundos do filme, como momentos pequenos, aparentemente insignificantes, que podem mudar o rumo de nossas vidas. A energia aqui contrasta com o tom sombrio da sequência inicial, mas funciona tematicamente, reforçando a ideia de que, mesmo em tempos de grande perda e colapso social, a conexão humana e momentos fugazes de felicidade são o que dão sentido à vida.

O movimento final, que explora a infância de Chuck e suas primeiras influências, adiciona profundidade emocional à história, ancorando as reflexões filosóficas em uma história pessoal. A interpretação de Mark Hamill como o avô de Chuck se destaca, oferecendo um raro momento de grande sabedoria. As interações entre Chuck e sua família revelam as origens de seu caráter, particularmente seu amor pela dança, que serve como uma metáfora para a alegria e liberdade que ele busca ao longo de sua vida. Flanagan usa este segmento para refletir sobre o passar do tempo, capturando a sensação de olhar para trás na juventude como um adulto, como momentos que antes pareciam eternos agora desaparecem em um piscar de olhos.

No entanto, por mais que o filme tenha sucesso em seus dois primeiros atos, o terceiro movimento, que tenta amarrar as diversas pontas soltas da vida de Chuck e do mundo apocalíptico ao seu redor, acaba tropeçando. Enquanto a paciência e a experimentação estrutural do filme continuam cativantes, a revelação da conexão de Chuck com os outros personagens do filme soa forçada demais. O mistério que havia sido tão atraente perde seu encanto quando é explicado de maneira muito explícita. Há uma tensão entre a qualidade abstrata e quase onírica do filme e a tentativa final de fornecer respostas concretas, e, nesse deslocamento, a narrativa perde parte de seu poder etéreo.


Apesar desses tropeços, o núcleo emocional do filme permanece intacto. A direção e o roteiro de Flanagan, combinados com um elenco de peso que inclui Hiddleston, Ejiofor, Gillan e Hamill, criam uma obra que se sente profundamente pessoal e universalmente ressonante. É um filme sobre a beleza da vida, a inevitabilidade da morte e os mistérios insondáveis que moldam nossa existência. A habilidade característica de Flanagan de evocar emoção, mesmo sem os elementos, brilha aqui, fazendo de “A Vida de Chuck” uma meditação sobre a mortalidade que é tão comovente quanto enigmática.

A Vida de Chuck pode não ser para todos, é um filme que exige paciência e envolvimento, pedindo ao público que abrace sua estrutura não convencional e sua ambiguidade temática. Mas para aqueles dispostos a se entregar ao seu ritmo, oferece uma experiência gratificante que persiste muito depois dos créditos finais. No fim, é um filme sobre a vida tanto quanto é sobre a inevitabilidade do seu fim, nos deixando a refletir, assim como a pergunta central do filme, se respostas realmente tornariam algo bom ainda melhor.

crítica | O Último azul


"O Último Azul", novo trabalho do diretor Gabriel Mascaro, se insere com perfeição no campo da distopia social, onde a crítica à realidade é feita com uma sensibilidade poética e uma abordagem visual de tirar o fôlego. Se o cineasta já havia conquistado seu espaço com produções como “Boi Neon” e “Divino Amor”, é em “O Último Azul” que ele atinge um novo patamar, apresentando uma história mais madura e intimista, ao mesmo tempo que não perde o olhar humanitário e preciso sobre a sociedade brasileira.

A trama se passa em um futuro próximo, mas não tão distante da realidade, onde um governo autoritário impõe que cidadãos com mais de 75 anos sejam deslocados para uma colônia habitacional para idosos. Tereza, interpretada com muita maestria por Denise Weinberg, é uma mulher de 77 anos que se recusa a aceitar sua "despedida" e embarca em uma jornada fluvial na região amazônica, buscando o direito de decidir seu próprio destino. A performance de Denise Weinberg, repleta de nuances, traz à tona uma personagem complexa, que, longe de se render ao papel de idosa passiva e invisível, se reinventa, questionando o lugar que a sociedade lhe reservou.

O filme é uma reflexão profunda sobre o etarismo e a desumanização das pessoas mais velhas, temas que são tratados de forma cuidadosa, sem cair na armadilha do sentimentalismo. O envelhecimento, neste contexto, não é apenas uma questão física, mas uma batalha pela autonomia e pela dignidade. Tereza não está em busca de uma "redenção romântica", mas de um novo significado para sua vida. Ao longo de sua jornada, ela se depara com outros personagens, como Cadu (Rodrigo Santoro) e Ludemir (Adanilo Reis), que também enfrentam suas próprias limitações e busca de sentido, mas o impacto de seu encontro com Tereza é explícito, desafiando seus próprios conceitos de liberdade e existência.


Gabriel Mascaro é habilidoso em criar uma atmosfera imersiva que vai além da mera locação exótica da Amazônia. A floresta e seus rios tornam-se personagens vivos, cujas texturas e paisagens são capturadas pela câmera de Guillermo Garza de maneira hipnótica, reforçando as temáticas do filme. A natureza não é apenas um pano de fundo; ela pulsa, com seus mistérios e fragilidades, acompanhando a trajetória de Tereza e seus encontros com o sobrenatural. O uso de elementos como os caracóis alucinógenos e os crocodilos não é mera estética, mas uma metáfora para a transformação interna da protagonista, sugerindo que o processo de libertação envolve tanto o físico quanto o espiritual.

O realismo mágico aqui se desvela de forma sutil, fluída e orgânica. Não se trata de uma fuga para o fantástico, mas de uma integração natural do simbólico com o concreto. As figuras místicas presentes na história funcionam como aliadas de Tereza, em um universo onde o invisível se entrelaça com o visível e o espiritual influencia a realidade de maneira palpável. Nesse sentido, o filme oferece um olhar de resistência contra as políticas opressivas e desumanizadoras que, embora amplificadas para efeito dramático, não estão tão distantes de nossa realidade.

A crítica social que permeia a história não é explícita de forma panfletária, mas sim construída através da jornada de Tereza. Ela, assim como muitos idosos ao redor do mundo, se vê privada da liberdade de viver como deseja, sendo obrigada a se submeter a um sistema que a vê como descartável. No entanto, sua resistência, ainda que silenciosa e simbólica, é uma forma poderosa de dissidência contra esse apagamento social. Ao contrário de muitos filmes que sugerem uma "grande virada" ou um final reconfortante, Mascaro deixa o desfecho de Tereza em aberto, sugerindo que sua verdadeira vitória reside na simples decisão de continuar vivendo de acordo com suas próprias escolhas.


A fotografia, a direção de arte e a atuação de Denise Weinberg são os pilares que sustentam a complexidade do filme. Mascaro consegue, com uma direção precisa e sensível, equilibrar a tensão social com a construção de um retrato íntimo e poderoso de uma mulher em busca de sua própria autonomia. Não há uma resolução simples para os dilemas enfrentados por Tereza, mas a narrativa não exige uma conclusão clara para que sua mensagem ressoe profundamente.

O Último Azul é notável, não apenas pela sua crítica incisiva ao envelhecimento e ao etarismo, mas também pela sua habilidade de capturar a beleza e a luta pela liberdade de uma maneira poética e impactante. Gabriel Mascaro, com sua visão amadurecida, entrega um filme que não apenas desafia as convenções do cinema brasileiro contemporâneo, mas também provoca uma reflexão necessária sobre o que significa resistir à opressão, em todas as suas formas.

11/08/2025

Crítica | C.I.C - CENTRAL DE INTELIGÊNCIA CEARENSE


Wanderlei, codinome Karkará, é um agente secreto brasileiro encarregado de enfrentar alguns dos criminosos mais perigosos do planeta. Sua nova missão envolve recuperar a fórmula de um projeto ultrassecreto desenvolvido em parceria por Brasil, Paraguai e Argentina. A premissa, digna de um thriller de espionagem internacional, aqui é deliberadamente virada do avesso para dar lugar a uma comédia escrachada, carregada de exageros e piadas de quinta série. 

O longa mergulha de cabeça no estilo de ação absurda popularizado pelo cinema indiano, onde cenas impossíveis e reviravoltas mirabolantes servem muito mais para arrancar risos do que para criar tensão. Mas ao contrário de produções que caem no exagero por acidente, C.I.C deixa claro desde o início que o exagero é o seu combustível e a galhofa, o seu destino final.

O maior trunfo do filme está na forma como a cultura cearense permeia cada diálogo, cada piada e cada expressão. Edmilson Filho é o centro gravitacional da produção, carregando o humor com seu carisma, seu sotaque inconfundível e um timing cômico que transforma até as falas mais simples em momentos engraçados. Entre o elenco de apoio, vale destacar Alana Ferri, que interpreta uma agente argentina de postura séria, mas com um portunhol afiado e um senso de humor que aparece nos momentos certos, funcionando como um contraponto curioso à explosão de exageros ao redor.


Apesar do título e da forte identidade regional, a ambientação vai além do Ceará. O filme se desloca para locações em Ciudad del Este e outros pontos da América do Sul, explorando de forma bem-humorada a rivalidade entre países vizinhos. Essa mistura de ambientação regional e narrativa internacional cria um pano de fundo caricato que combina perfeitamente com o tom do longa.

Com 90 minutos de duração, C.I.C poderia ser ágil do início ao fim, mas acaba tropeçando em alguns momentos arrastados. Mudanças bruscas de rumo no enredo criam uma barriga narrativa que quebra o ritmo. Ainda assim, é difícil culpar a direção por “se perder” nos exageros, já que esse parece ser justamente o objetivo: levar o absurdo até o limite e abraçá-lo sem vergonha. Os efeitos especiais são toscos, e o filme sabe disso. Ao invés de disfarçar, a produção os transforma em parte do charme, algo que reforça a estética de galhofa.

A trilha sonora cumpre seu papel, ainda que sem grandes momentos memoráveis, mas funciona como apoio ao clima leve e debochado. Já os cenários, que alternam entre o regional e o internacional, ajudam a sustentar a atmosfera de paródia de espionagem.


C.I.C – Central de Inteligência Cearense não é um filme de ação convencional e nem tenta ser. É uma comédia nacional caricata, feita para quem gosta de humor escrachado, piadas bobas e exageros propositais. Para esse público, o longa entrega exatamente o que promete: um passeio divertido pela cultura Cearense e pela América do Sul, conduzido por um protagonista carismático e enraizado na cultura local. 

Quem entrar esperando um Missão: Impossível vai se decepcionar. Mas quem der espaço para a sátira vai encontrar um filme que se assume por completo e é justamente essa sinceridade debochada que o torna bom.

06/08/2025

crítica | juntos

No amplo espectro de gênero do cinema, poucos temas se mostram tão férteis quanto os românticos. Juntos, longa de estreia de Michael Shanks, abraça esse território, que é ao mesmo tempo familiar e profundamente incômodo com uma inventividade que mistura terror, comédia e um olhar agudo sobre os limites da convivência a dois. O resultado é um filme que parte de uma premissa engenhosa para construir uma temática sangrenta e perturbadora da codependência afetiva, demonstrando como o amor pode ser, literalmente, um laço impossível de romper. 

Estrelado pelo casal da vida real Dave Franco e Alison Brie, o filme retrata Tim e Millie, um casal em uma crise silenciosa. Depois de anos juntos, os dois se mudam para uma cidade pequena onde Millie inicia um novo trabalho como professora, enquanto Tim continua sonhando com o sucesso como músico, embora sem muita iniciativa concreta. Desde o início, a dinâmica entre eles sugere um desequilíbrio afetivo. Millie assume a responsabilidade prática da relação, enquanto Tim flutua em sua insegurança e apatia. Esse descompasso, no entanto, nunca é abordado diretamente; em vez disso, ele se revela em pequenos gestos, pausas incômodas e silêncios reveladores. Shanks, com habilidade, mergulha nesse cotidiano esgarçado com um olhar atento, delineando um relacionamento que parece estável, mas que esconde rachaduras profundas. 

O ponto de virada acontece quando, durante uma caminhada, o casal cai em uma caverna subterrânea de visual reminiscente das obras de H.R. Giger e John Carpenter. Após passarem a noite no local, Tim, com sede extrema, bebe de um poço contaminado e, a partir daí, as coisas começam a se transformar e não apenas no nível psicológico. O casal acorda com seus corpos estranhamente grudados, e aos poucos, essa união se torna literal e grotesca. Membros se entrelaçam, ossos estalam, e a dependência emocional se manifesta em contorções físicas cada vez mais extremas. O horror do filme não é apenas visual: ele reside no simbolismo da fusão entre dois indivíduos que, incapazes de se distanciar emocionalmente, tornam-se reféns de seus próprios vínculos. 



Franco e Brie entregam atuações interessantes, explorando com intensidade tanto os aspectos dramáticos quanto os momentos mais absurdos da narrativa. A química entre eles é inegável, mas é justamente essa química que Shanks transforma em uma armadilha. Ao mesmo tempo em que os corpos se unem de maneira grotesca, as identidades se dissolvem, e a individualidade de cada um se esvai. A partir desse ponto, o filme avança como um experimento de gênero, misturando body horror com ação cômica e doses generosas de nonsense. As cenas de sexo se tornam desconfortáveis, os diálogos revelam verdades incômodas, e a tensão entre amor e repulsa atinge níveis físicos e emocionais devastadores. 

O roteiro evita a armadilha da pretensão intelectual, optando por um humor ácido e por uma linguagem cinematográfica acessível, ainda que visualmente arrojada. As referências a Cronenberg são claras, assim como a influência de The Thing, mas Shanks não se limita à citação. Ele utiliza esses elementos como trampolim para criar uma identidade própria, na qual o grotesco serve como metáfora para os dilemas emocionais de seus personagens. A trilha sonora e o design de som são usados com parcimônia e precisão, ampliando o desconforto sem recorrer ao susto fácil (o famoso jump scare). Há um cuidado estético evidente em cada quadro, que faz com que o horror se infiltre de maneira silenciosa, quase imperceptível, até se tornar inevitável. 


No entanto, Juntos não é um filme isento de falhas. O terceiro ato, embora ambicioso, se desequilibra ao tentar amarrar todas as pontas soltas da narrativa. Algumas explicações soam forçadas e há uma pressa em resolver os conflitos que contrasta com o ritmo mais contemplativo do início. Ainda assim, mesmo com essa conclusão menos refinada, o filme mantém seu impacto ao reafirmar sua tese central: a de que todo relacionamento íntimo exige concessões, mas quando essas concessões ultrapassam os limites da autonomia individual, o resultado pode ser monstruoso. 

Mais do que uma sátira sobre casais disfuncionais, Juntos é uma parábola sobre os perigos da fusão emocional, um lembrete de que o amor sem espaço para a individualidade pode se tornar sufocante. A metáfora da ligação física entre os protagonistas é explorada até suas últimas consequências, oferecendo ao espectador um espetáculo grotesco e fascinante, mas também uma reflexão profunda sobre o desejo de união e o medo da separação. 

Em uma era saturada de filmes de terror com metáforas elaboradas e propostas pretensiosas, Michael Shanks consegue o feito raro de equilibrar inteligência narrativa e entretenimento. Juntos é um filme que se diverte com sua própria loucura, sem jamais perder de vista o coração pulsante de sua história: o drama de dois seres humanos que, ao tentar salvar o amor que os une, descobrem que talvez seja o próprio amor que está os destruindo. A mensagem final é clara e inquietante, nem sempre estar junto é a melhor forma de permanecer inteiro.

crítica | a hora do mal


Com “A Hora do Mal”, Zach Cregger consolida-se como uma das vozes mais criativas e contundentes do terror contemporâneo. Após o sucesso surpreendente de Barbarian (2022), seu novo trabalho eleva o gênero a outro patamar, mesclando tensão, humor ácido e uma crítica social incisiva. O que poderia ser apenas mais um filme sobre desaparecimento de crianças em uma cidade pequena torna-se, pelas mãos de Cregger, uma meditação sombria sobre culpa coletiva, falência institucional e a fragilidade emocional das comunidades suburbanas dos Estados Unidos. 

O enredo parte de um mistério inquietante: em uma noite qualquer, quase vinte crianças de uma mesma sala de aula simplesmente abandonam suas casas e desaparecem. Sem pistas concretas, gravações de câmeras mostram apenas as crianças caminhando em silêncio com os braços estendidos como aviões desgovernados. Em meio à histeria coletiva, recai sobre a professora Justine Gandy, vivida pela excelente Julia Garner, o peso da desconfiança e do julgamento social. Com um passado conturbado e fragilidades pessoais latentes, ela se vê acuada pela mídia, pelos pais e por si mesma. Cregger constrói aqui uma personagem profundamente humana, imperfeita, emocionalmente devastada, mas movida por um amor genuíno por seus alunos. 

Ao invés de se limitar à perspectiva de Justine, o diretor opta por uma estrutura episódica, alternando o foco narrativo entre diferentes personagens afetados pela tragédia. É como um quebra-cabeça montado a partir de múltiplas peças desconexas que, pouco a pouco, revelam um panorama mais amplo e assustador. Há Archer, interpretado por Josh Brolin, pai de um dos meninos desaparecidos que transforma seu luto em raiva. Paul, um policial fragilizado por traumas e vícios, encarna a falência moral das forças de segurança. James, vivido por Austin Abrams, é o retrato do abandono social, um jovem tragado pelas drogas e pelo desprezo popular. E há Alex, o único aluno que não desapareceu, cuja presença misteriosa paira como uma interrogação sobre o que realmente aconteceu naquela noite. 


Essa multiplicidade de pontos de vista torna “A Hora do Mal” uma experiência semelhante a Magnólia ou Pulp Fiction, filmes que constroem sua força narrativa na justaposição de histórias que convergem para um núcleo emocional comum. No caso de Cregger, esse núcleo é o fracasso coletivo de uma sociedade que, ao invés de proteger seus membros mais vulneráveis, os transforma em bodes expiatórios ou simplesmente os negligencia. O horror do filme não está apenas nas cenas de tensão ou violência, mas no desconforto moral provocado pela forma como tratamos nossas tragédias. É um terror profundamente americano, alimentado pelo medo, pela desinformação e pela obsessão em buscar culpados ao invés de soluções. 

Visualmente, o filme é um espetáculo de contrastes. O diretor de fotografia Larkin Seiple cria ambientes suburbanos que exalam familiaridade e ameaça ao mesmo tempo. A câmera encontra beleza no grotesco, especialmente nas sequências oníricas que mergulham em atmosferas surrealistas e nos lembram que o medo, muitas vezes, é mais psicológico do que físico. A trilha sonora e o design de som contribuem para essa sensação constante de desconforto e iminência, enquanto o roteiro equilibra habilmente momentos de humor ácido com reviravoltas chocantes. 

O trabalho de elenco é um ponto alto. Julia Garner oferece uma performance poderosa, expressando com sutileza a degradação emocional de Justine e sua posterior resiliência. Josh Brolin, como Archer, entrega um de seus papéis mais humanos e frágeis, oscilando entre a fúria e o arrependimento. Alden Ehrenreich confere a Paul uma intensidade contida, revelando as rachaduras de um sistema que colapsa por dentro. Austin Abrams rouba cenas com seu retrato doloroso e sarcástico de um jovem à deriva. E Amy Madigan merece todos os elogios por sua participação impactante e perturbadora. 

Mas o que torna “A Hora do Mal” especialmente relevante é seu subtexto. O filme denuncia, sem didatismo, a maneira como a sociedade americana transforma suas próprias falhas em espetáculos. A tragédia vira narrativa para a mídia, a dor é instrumentalizada por pais desesperados, a polícia finge controle, e os reais problemas estruturais são ignorados. Em vez de assumir responsabilidades, os personagens projetam culpa nos outros, em um ciclo interminável de alienação. O título original, Weapons, não poderia ser mais simbólico pois, todos, em algum momento, tornam-se armas, seja da negligência, da ignorância, da fúria ou do desespero. 

Zach Cregger não está apenas entregando um excelente filme de terror. Ele está desafiando as convenções do gênero com uma abordagem autoral, reflexiva e ousada. Ao conjugar entretenimento e crítica social com maestria, “A Hora do Mal” se impõe como uma obra-prima contemporânea do horror psicológico. É um filme que assusta não apenas pelos seus sustos, mas por nos obrigar a encarar o espelho da nossa própria complacência. Um lembrete de que, por trás das cercas brancas e ruas silenciosas dos subúrbios americanos, o mal não apenas se esconde ele é cultivado no "American Way of Life".

Crítica | Uma Sexta Feira Mais Louca Ainda


Vinte e dois anos após o lançamento de Sexta-Feira Muito Louca, Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis retornam às telas com uma sequência que não apenas honra o clássico original, mas também propõe um olhar contemporâneo, sensível e cômico sobre a maternidade, à adolescência e os laços familiares. Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é uma bem-sucedida viagem nostálgica que surpreendentemente não se limita à saudade: ela a reinventa, atualiza e transforma em uma nova experiência intergeracional. 

O filme se passa anos depois dos eventos do primeiro longa. Anna (Lindsay Lohan) agora é uma mãe solteira prestes a se casar novamente, tentando equilibrar sua vida entre a filha Harper, a enteada Lily e a sempre presente figura materna de Tess (Jamie Lee Curtis), que agora assume o papel de avó. Com uma nova configuração familiar repleta de tensões e incertezas, uma troca de corpos em massa acontece entre as quatro protagonistas, provocando não apenas o caos, mas também momentos de revelação e empatia.

A trama central do longa se apoia na repetição da fórmula do original: a troca de corpos como mecanismo narrativo para gerar tanto humor quanto compreensão entre personagens que inicialmente parecem incapazes de se comunicar. No entanto, o novo filme adiciona camadas significativas ao desenvolver as consequências emocionais e psicológicas desse fenômeno em uma estrutura familiar ampliada. Em vez de apenas resolver uma briga entre mãe e filha, Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda expande esse gesto simbólico para abranger gerações e modelos parentais diversos, criando um diálogo sensível sobre pertencimento, amadurecimento e aceitação.


O que realmente eleva o filme é a química entre Lohan e Curtis, que continuam brilhantes e afinadas. Ambas não apenas retomam seus papéis com naturalidade, mas demonstram um amadurecimento artístico que enriquece cada cena compartilhada. Se no primeiro filme o arco narrativo era centrado no conflito adolescente entre mãe e filha, aqui vemos mulheres que, mesmo em fases diferentes da vida, ainda lutam para se entender, se respeitar e se conectar.

Curtis, com sua habitual presença cênica marcante, confere a Tess um ar de sabedoria que não se furta ao humor físico, enquanto Lohan, cada vez mais à vontade em papéis de complexidade emocional, mostra uma Anna mais madura, mas ainda vulnerável. Ambas protagonizam momentos memoráveis, equilibrando riso e emoção com notável fluidez. A atuação das jovens Julia Butters e Sophia Hammons, que vivem Harper e Lily, também merece destaque, pois oferecem à história o frescor necessário para atrair uma nova geração.

A direção de Nisha Ganatra encontra um equilíbrio cuidadoso entre o ritmo frenético das comédias familiares e os momentos de uma pausa emocional. Ela valoriza as expressões faciais, os silêncios incômodos e os diálogos que, ainda que simples, carregam significados profundos sobre o ser mãe, filha, mulher. A trilha sonora também contribui para a atmosfera nostálgica e contemporânea, e há referências visuais e sonoras que farão os espectadores mais velhos sorrirem de reconhecimento.

O roteiro acerta ao não transformar Harper e Lily em simples arquétipos de adolescentes revoltadas. Há uma genuína tentativa de compreender as dores dessa fase da vida, mostrando que, para além dos clichês, os jovens também têm sentimentos complexos e necessidade de serem ouvidos. Da mesma forma, o filme retrata os desafios da parentalidade contemporânea de forma honesta, discutindo as diferenças de estilos entre gerações e a constante sensação de inadequação que muitas mães enfrentam.


Mas se a trama funciona tão bem é porque ela tem como base a empatia como elemento central. Colocar-se no lugar do outro, ainda que literalmente neste universo ficcional, é mais do que um recurso narrativo: é a lição essencial do filme. A comédia corporal decorrente da troca de corpos serve para fazer rir, claro, mas também para abrir espaço ao entendimento, à reconciliação e ao afeto.

A grande virtude de Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é ser um filme de família não apenas em sua estrutura e enredo, mas em sua vocação afetiva. Ele reconhece que a vida em família é confusa, caótica e muitas vezes dolorosa, mas também repleta de possibilidades de crescimento conjunto. A beleza está no esforço contínuo de se compreenderem, mesmo quando as palavras falham ou os sentimentos se embaralham.



Apesar de sua estrutura previsível, o longa se destaca por não subestimar seu público. Ele entende que crianças e adolescentes são capazes de lidar com temas mais densos, e que os adultos ainda têm muito o que aprender sobre si mesmos. Há momentos de humor bobo, sim, mas também há lágrimas sinceras e reflexões profundas.

Em tempos de relações familiares frequentemente mediadas por telas, esse filme propõe algo valioso: tempo de qualidade juntos, risadas compartilhadas, empatia exercida. O espectador sai da sala não apenas com a sensação de ter revisto personagens queridos, mas com uma espécie de alívio emocional, como quem reencontra uma parte de si.

Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é mais do que uma boa sequência. É um lembrete poderoso de que amadurecer não significa abandonar a leveza, de que crescer dói, mas pode ser engraçado, e de que há beleza no esforço constante de se colocar no lugar do outro algo que, no fundo, todos nós precisamos praticar um pouco mais.