06/08/2025

crítica | juntos

No amplo espectro de gênero do cinema, poucos temas se mostram tão férteis quanto os românticos. Juntos, longa de estreia de Michael Shanks, abraça esse território, que é ao mesmo tempo familiar e profundamente incômodo com uma inventividade que mistura terror, comédia e um olhar agudo sobre os limites da convivência a dois. O resultado é um filme que parte de uma premissa engenhosa para construir uma temática sangrenta e perturbadora da codependência afetiva, demonstrando como o amor pode ser, literalmente, um laço impossível de romper. 

Estrelado pelo casal da vida real Dave Franco e Alison Brie, o filme retrata Tim e Millie, um casal em uma crise silenciosa. Depois de anos juntos, os dois se mudam para uma cidade pequena onde Millie inicia um novo trabalho como professora, enquanto Tim continua sonhando com o sucesso como músico, embora sem muita iniciativa concreta. Desde o início, a dinâmica entre eles sugere um desequilíbrio afetivo. Millie assume a responsabilidade prática da relação, enquanto Tim flutua em sua insegurança e apatia. Esse descompasso, no entanto, nunca é abordado diretamente; em vez disso, ele se revela em pequenos gestos, pausas incômodas e silêncios reveladores. Shanks, com habilidade, mergulha nesse cotidiano esgarçado com um olhar atento, delineando um relacionamento que parece estável, mas que esconde rachaduras profundas. 

O ponto de virada acontece quando, durante uma caminhada, o casal cai em uma caverna subterrânea de visual reminiscente das obras de H.R. Giger e John Carpenter. Após passarem a noite no local, Tim, com sede extrema, bebe de um poço contaminado e, a partir daí, as coisas começam a se transformar e não apenas no nível psicológico. O casal acorda com seus corpos estranhamente grudados, e aos poucos, essa união se torna literal e grotesca. Membros se entrelaçam, ossos estalam, e a dependência emocional se manifesta em contorções físicas cada vez mais extremas. O horror do filme não é apenas visual: ele reside no simbolismo da fusão entre dois indivíduos que, incapazes de se distanciar emocionalmente, tornam-se reféns de seus próprios vínculos. 



Franco e Brie entregam atuações interessantes, explorando com intensidade tanto os aspectos dramáticos quanto os momentos mais absurdos da narrativa. A química entre eles é inegável, mas é justamente essa química que Shanks transforma em uma armadilha. Ao mesmo tempo em que os corpos se unem de maneira grotesca, as identidades se dissolvem, e a individualidade de cada um se esvai. A partir desse ponto, o filme avança como um experimento de gênero, misturando body horror com ação cômica e doses generosas de nonsense. As cenas de sexo se tornam desconfortáveis, os diálogos revelam verdades incômodas, e a tensão entre amor e repulsa atinge níveis físicos e emocionais devastadores. 

O roteiro evita a armadilha da pretensão intelectual, optando por um humor ácido e por uma linguagem cinematográfica acessível, ainda que visualmente arrojada. As referências a Cronenberg são claras, assim como a influência de The Thing, mas Shanks não se limita à citação. Ele utiliza esses elementos como trampolim para criar uma identidade própria, na qual o grotesco serve como metáfora para os dilemas emocionais de seus personagens. A trilha sonora e o design de som são usados com parcimônia e precisão, ampliando o desconforto sem recorrer ao susto fácil (o famoso jump scare). Há um cuidado estético evidente em cada quadro, que faz com que o horror se infiltre de maneira silenciosa, quase imperceptível, até se tornar inevitável. 


No entanto, Juntos não é um filme isento de falhas. O terceiro ato, embora ambicioso, se desequilibra ao tentar amarrar todas as pontas soltas da narrativa. Algumas explicações soam forçadas e há uma pressa em resolver os conflitos que contrasta com o ritmo mais contemplativo do início. Ainda assim, mesmo com essa conclusão menos refinada, o filme mantém seu impacto ao reafirmar sua tese central: a de que todo relacionamento íntimo exige concessões, mas quando essas concessões ultrapassam os limites da autonomia individual, o resultado pode ser monstruoso. 

Mais do que uma sátira sobre casais disfuncionais, Juntos é uma parábola sobre os perigos da fusão emocional, um lembrete de que o amor sem espaço para a individualidade pode se tornar sufocante. A metáfora da ligação física entre os protagonistas é explorada até suas últimas consequências, oferecendo ao espectador um espetáculo grotesco e fascinante, mas também uma reflexão profunda sobre o desejo de união e o medo da separação. 

Em uma era saturada de filmes de terror com metáforas elaboradas e propostas pretensiosas, Michael Shanks consegue o feito raro de equilibrar inteligência narrativa e entretenimento. Juntos é um filme que se diverte com sua própria loucura, sem jamais perder de vista o coração pulsante de sua história: o drama de dois seres humanos que, ao tentar salvar o amor que os une, descobrem que talvez seja o próprio amor que está os destruindo. A mensagem final é clara e inquietante, nem sempre estar junto é a melhor forma de permanecer inteiro.

crítica | a hora do mal


Com “A Hora do Mal”, Zach Cregger consolida-se como uma das vozes mais criativas e contundentes do terror contemporâneo. Após o sucesso surpreendente de Barbarian (2022), seu novo trabalho eleva o gênero a outro patamar, mesclando tensão, humor ácido e uma crítica social incisiva. O que poderia ser apenas mais um filme sobre desaparecimento de crianças em uma cidade pequena torna-se, pelas mãos de Cregger, uma meditação sombria sobre culpa coletiva, falência institucional e a fragilidade emocional das comunidades suburbanas dos Estados Unidos. 

O enredo parte de um mistério inquietante: em uma noite qualquer, quase vinte crianças de uma mesma sala de aula simplesmente abandonam suas casas e desaparecem. Sem pistas concretas, gravações de câmeras mostram apenas as crianças caminhando em silêncio com os braços estendidos como aviões desgovernados. Em meio à histeria coletiva, recai sobre a professora Justine Gandy, vivida pela excelente Julia Garner, o peso da desconfiança e do julgamento social. Com um passado conturbado e fragilidades pessoais latentes, ela se vê acuada pela mídia, pelos pais e por si mesma. Cregger constrói aqui uma personagem profundamente humana, imperfeita, emocionalmente devastada, mas movida por um amor genuíno por seus alunos. 

Ao invés de se limitar à perspectiva de Justine, o diretor opta por uma estrutura episódica, alternando o foco narrativo entre diferentes personagens afetados pela tragédia. É como um quebra-cabeça montado a partir de múltiplas peças desconexas que, pouco a pouco, revelam um panorama mais amplo e assustador. Há Archer, interpretado por Josh Brolin, pai de um dos meninos desaparecidos que transforma seu luto em raiva. Paul, um policial fragilizado por traumas e vícios, encarna a falência moral das forças de segurança. James, vivido por Austin Abrams, é o retrato do abandono social, um jovem tragado pelas drogas e pelo desprezo popular. E há Alex, o único aluno que não desapareceu, cuja presença misteriosa paira como uma interrogação sobre o que realmente aconteceu naquela noite. 


Essa multiplicidade de pontos de vista torna “A Hora do Mal” uma experiência semelhante a Magnólia ou Pulp Fiction, filmes que constroem sua força narrativa na justaposição de histórias que convergem para um núcleo emocional comum. No caso de Cregger, esse núcleo é o fracasso coletivo de uma sociedade que, ao invés de proteger seus membros mais vulneráveis, os transforma em bodes expiatórios ou simplesmente os negligencia. O horror do filme não está apenas nas cenas de tensão ou violência, mas no desconforto moral provocado pela forma como tratamos nossas tragédias. É um terror profundamente americano, alimentado pelo medo, pela desinformação e pela obsessão em buscar culpados ao invés de soluções. 

Visualmente, o filme é um espetáculo de contrastes. O diretor de fotografia Larkin Seiple cria ambientes suburbanos que exalam familiaridade e ameaça ao mesmo tempo. A câmera encontra beleza no grotesco, especialmente nas sequências oníricas que mergulham em atmosferas surrealistas e nos lembram que o medo, muitas vezes, é mais psicológico do que físico. A trilha sonora e o design de som contribuem para essa sensação constante de desconforto e iminência, enquanto o roteiro equilibra habilmente momentos de humor ácido com reviravoltas chocantes. 

O trabalho de elenco é um ponto alto. Julia Garner oferece uma performance poderosa, expressando com sutileza a degradação emocional de Justine e sua posterior resiliência. Josh Brolin, como Archer, entrega um de seus papéis mais humanos e frágeis, oscilando entre a fúria e o arrependimento. Alden Ehrenreich confere a Paul uma intensidade contida, revelando as rachaduras de um sistema que colapsa por dentro. Austin Abrams rouba cenas com seu retrato doloroso e sarcástico de um jovem à deriva. E Amy Madigan merece todos os elogios por sua participação impactante e perturbadora. 

Mas o que torna “A Hora do Mal” especialmente relevante é seu subtexto. O filme denuncia, sem didatismo, a maneira como a sociedade americana transforma suas próprias falhas em espetáculos. A tragédia vira narrativa para a mídia, a dor é instrumentalizada por pais desesperados, a polícia finge controle, e os reais problemas estruturais são ignorados. Em vez de assumir responsabilidades, os personagens projetam culpa nos outros, em um ciclo interminável de alienação. O título original, Weapons, não poderia ser mais simbólico pois, todos, em algum momento, tornam-se armas, seja da negligência, da ignorância, da fúria ou do desespero. 

Zach Cregger não está apenas entregando um excelente filme de terror. Ele está desafiando as convenções do gênero com uma abordagem autoral, reflexiva e ousada. Ao conjugar entretenimento e crítica social com maestria, “A Hora do Mal” se impõe como uma obra-prima contemporânea do horror psicológico. É um filme que assusta não apenas pelos seus sustos, mas por nos obrigar a encarar o espelho da nossa própria complacência. Um lembrete de que, por trás das cercas brancas e ruas silenciosas dos subúrbios americanos, o mal não apenas se esconde ele é cultivado no "American Way of Life".

Crítica | Uma Sexta Feira Mais Louca Ainda


Vinte e dois anos após o lançamento de Sexta-Feira Muito Louca, Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis retornam às telas com uma sequência que não apenas honra o clássico original, mas também propõe um olhar contemporâneo, sensível e cômico sobre a maternidade, à adolescência e os laços familiares. Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é uma bem-sucedida viagem nostálgica que surpreendentemente não se limita à saudade: ela a reinventa, atualiza e transforma em uma nova experiência intergeracional. 

O filme se passa anos depois dos eventos do primeiro longa. Anna (Lindsay Lohan) agora é uma mãe solteira prestes a se casar novamente, tentando equilibrar sua vida entre a filha Harper, a enteada Lily e a sempre presente figura materna de Tess (Jamie Lee Curtis), que agora assume o papel de avó. Com uma nova configuração familiar repleta de tensões e incertezas, uma troca de corpos em massa acontece entre as quatro protagonistas, provocando não apenas o caos, mas também momentos de revelação e empatia.

A trama central do longa se apoia na repetição da fórmula do original: a troca de corpos como mecanismo narrativo para gerar tanto humor quanto compreensão entre personagens que inicialmente parecem incapazes de se comunicar. No entanto, o novo filme adiciona camadas significativas ao desenvolver as consequências emocionais e psicológicas desse fenômeno em uma estrutura familiar ampliada. Em vez de apenas resolver uma briga entre mãe e filha, Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda expande esse gesto simbólico para abranger gerações e modelos parentais diversos, criando um diálogo sensível sobre pertencimento, amadurecimento e aceitação.


O que realmente eleva o filme é a química entre Lohan e Curtis, que continuam brilhantes e afinadas. Ambas não apenas retomam seus papéis com naturalidade, mas demonstram um amadurecimento artístico que enriquece cada cena compartilhada. Se no primeiro filme o arco narrativo era centrado no conflito adolescente entre mãe e filha, aqui vemos mulheres que, mesmo em fases diferentes da vida, ainda lutam para se entender, se respeitar e se conectar.

Curtis, com sua habitual presença cênica marcante, confere a Tess um ar de sabedoria que não se furta ao humor físico, enquanto Lohan, cada vez mais à vontade em papéis de complexidade emocional, mostra uma Anna mais madura, mas ainda vulnerável. Ambas protagonizam momentos memoráveis, equilibrando riso e emoção com notável fluidez. A atuação das jovens Julia Butters e Sophia Hammons, que vivem Harper e Lily, também merece destaque, pois oferecem à história o frescor necessário para atrair uma nova geração.

A direção de Nisha Ganatra encontra um equilíbrio cuidadoso entre o ritmo frenético das comédias familiares e os momentos de uma pausa emocional. Ela valoriza as expressões faciais, os silêncios incômodos e os diálogos que, ainda que simples, carregam significados profundos sobre o ser mãe, filha, mulher. A trilha sonora também contribui para a atmosfera nostálgica e contemporânea, e há referências visuais e sonoras que farão os espectadores mais velhos sorrirem de reconhecimento.

O roteiro acerta ao não transformar Harper e Lily em simples arquétipos de adolescentes revoltadas. Há uma genuína tentativa de compreender as dores dessa fase da vida, mostrando que, para além dos clichês, os jovens também têm sentimentos complexos e necessidade de serem ouvidos. Da mesma forma, o filme retrata os desafios da parentalidade contemporânea de forma honesta, discutindo as diferenças de estilos entre gerações e a constante sensação de inadequação que muitas mães enfrentam.


Mas se a trama funciona tão bem é porque ela tem como base a empatia como elemento central. Colocar-se no lugar do outro, ainda que literalmente neste universo ficcional, é mais do que um recurso narrativo: é a lição essencial do filme. A comédia corporal decorrente da troca de corpos serve para fazer rir, claro, mas também para abrir espaço ao entendimento, à reconciliação e ao afeto.

A grande virtude de Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é ser um filme de família não apenas em sua estrutura e enredo, mas em sua vocação afetiva. Ele reconhece que a vida em família é confusa, caótica e muitas vezes dolorosa, mas também repleta de possibilidades de crescimento conjunto. A beleza está no esforço contínuo de se compreenderem, mesmo quando as palavras falham ou os sentimentos se embaralham.



Apesar de sua estrutura previsível, o longa se destaca por não subestimar seu público. Ele entende que crianças e adolescentes são capazes de lidar com temas mais densos, e que os adultos ainda têm muito o que aprender sobre si mesmos. Há momentos de humor bobo, sim, mas também há lágrimas sinceras e reflexões profundas.

Em tempos de relações familiares frequentemente mediadas por telas, esse filme propõe algo valioso: tempo de qualidade juntos, risadas compartilhadas, empatia exercida. O espectador sai da sala não apenas com a sensação de ter revisto personagens queridos, mas com uma espécie de alívio emocional, como quem reencontra uma parte de si.

Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é mais do que uma boa sequência. É um lembrete poderoso de que amadurecer não significa abandonar a leveza, de que crescer dói, mas pode ser engraçado, e de que há beleza no esforço constante de se colocar no lugar do outro algo que, no fundo, todos nós precisamos praticar um pouco mais.