28/10/2025

Crítica | SPRINGSTEEN: SALVE ME DO DESCONHECIDO


“Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é uma cinebiografia que se afasta do molde tradicional dos filmes sobre músicos, recusando o espetáculo e a grandiosidade que normalmente acompanham o gênero. Dirigido por Scott Cooper, o longa se propõe a explorar não o mito de Bruce Springsteen, mas o homem por trás das canções, num período em que o sucesso o havia deixado à beira do esgotamento emocional e criativo. O resultado é um retrato melancólico, íntimo e por vezes dolorosamente lento, que se debruça sobre o processo artístico e o peso psicológico de ser um gênio que, no auge da fama, se vê à deriva.

A trama, ambientada no início dos anos 1980, acompanha o cantor logo após o estouro de “Hungry Heart” e a turnê triunfante do álbum “The River”. Jeremy Allen White encarna Springsteen em uma interpretação surpreendentemente contida, distante do carisma expansivo que se espera do astro. Seu Bruce é um homem introspectivo, consumido por dúvidas, mergulhado em leituras densas de Flannery O’Connor e em longas viagens noturnas pelas estradas de Nova Jersey. Ele aluga uma casa isolada em Colts Neck e tenta encontrar nas sombras e no silêncio a matéria-prima para um novo som, o que viria a ser o álbum “Nebraska”, um dos mais sombrios e minimalistas de sua carreira.

O filme começa tropeçando em clichês. A infância difícil, o pai violento, as brigas familiares e as inevitáveis cenas em preto e branco parecem seguir o manual do gênero biográfico musical. Há, inclusive, momentos em que o tom beira o didático, como se Cooper e Pamela Martin tentassem traduzir para o público a alma atormentada do artista de forma literal demais. Os flashbacks insistem em lembrar que o menino assustado de Freehold ainda vive dentro do homem, mas essa obviedade dilui parte da força emocional. Ainda assim, a narrativa encontra seu tom à medida que abandona os vícios da mitificação e passa a se concentrar na fragilidade mental e na solidão do personagem. 


A virada ocorre quando o foco deixa de ser o “nascimento de um gênio” e passa a ser o processo humano de criação. Ao tentar reproduzir suas demos caseiras no estúdio, Bruce se depara com a impossibilidade de traduzir em alta fidelidade o que apenas a precariedade do gravador TEAC 144 conseguiu capturar: o som cru, imperfeito, mas autêntico de uma alma em crise. Nesse ponto, o filme se transforma num estudo sobre a tensão entre arte e indústria, entre a pureza da expressão individual e as exigências comerciais que ameaçam corrompê-la. É aqui que Jeremy Strong, como Jon Landau, surge com uma atuação de grande sensibilidade. O empresário produtor de Springsteen é mostrado não como um manipulador ou explorador, mas como um confidente, alguém que compreende a dor do artista e tenta ampará-lo sem sufocar sua liberdade criativa.

A relação entre Bruce e Landau é o coração emocional do filme. Strong transmite, com um olhar sereno e um sorriso contido, o afeto de quem enxerga no amigo não um produto, mas uma pessoa em frangalhos. Essa humanidade sutil contrasta com o romance entre Springsteen e Faye, interpretada por Odessa Young, uma mãe solteira que o ajuda a relembrar o mundo fora das canções. Embora o relacionamento sirva de válvula emocional, Cooper evita transformá-lo em um melodrama. O que move a narrativa não é o amor romântico, mas a lenta reconciliação de Springsteen com sua própria vulnerabilidade. 

A direção de Cooper se mostra mais madura do que em seus trabalhos anteriores, como “Coração Louco”. Se lá a música era usada para elevar o drama, aqui ela é o drama. As canções de “Nebraska” não surgem como ilustrações, mas como extensões diretas do estado mental do protagonista. Em certos momentos, o uso da trilha é quase transcendental, especialmente nas cenas em que o rosto de White é iluminado apenas pelas sombras da noite enquanto a voz de Springsteen ecoa ao fundo. O filme encontra força justamente no contraste entre a grandiosidade de sua música e a pequenez de sua solidão.


Visualmente, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é um trabalho belíssimo. A fotografia alterna o calor nostálgico das luzes amareladas de Nova Jersey com a frieza das paisagens rurais e o peso das sombras interiores do artista. O filme cria uma atmosfera quase meditativa, na qual o tempo parece se estender e o espectador é convidado a habitar o silêncio junto com o protagonista. Esse ritmo contemplativo, no entanto, pode ser exaustivo para quem espera a energia boa de uma cinebiografia tradicional. Cooper se interessa mais pelos silêncios entre as notas do que pelos aplausos do público.  

O terceiro ato é onde o longa finalmente se liberta das convenções do gênero. Quando a depressão de Bruce se intensifica e sua relação com Faye se desintegra, o filme abandona a estrutura de ascensão e queda típica das biografias musicais e se torna algo mais íntimo e humano. Não há grandes revelações, nem redenções espetaculares. O que há é um homem tentando sobreviver ao próprio sucesso, buscando sentido na dor e no caos. Cooper trata essa jornada com honestidade e sensibilidade, evitando tanto a glamourização quanto o sentimentalismo barato. 

Jeremy Allen White oferece uma das performances mais contidas e profundas de sua carreira. Longe do estereótipo do astro, ele interpreta Springsteen como alguém cansado de ser lenda, um artista que prefere a escuridão à luz dos holofotes. Sua atuação cresce à medida que o filme se aprofunda, e há momentos em que bastam seus silêncios para traduzir o que mil diálogos não poderiam expressar. 

“Springsteen: Salve-me do Desconhecido” não é um filme para quem busca o espetáculo de palco, mas para quem se interessa pelo silêncio entre as canções, pelos fantasmas que assombram a criação e pelas dores que moldam a arte. Scott Cooper cria aqui uma obra que, embora imperfeita e por vezes arrastada, é honesta, emocionalmente poderosa e profundamente humana. Ao final, não há catarse nem triunfo, apenas um homem que encontra na vulnerabilidade a verdadeira forma de redenção.

crítica | Quando o céu se engana

“Quando o céu se engana” é uma comédia que tenta combinar humor, crítica social e fantasia em uma mistura ambiciosa, porém irregular. Dirigido e estrelado por Aziz Ansari, o filme é claramente inspirado no clássico “A felicidade não se compra”, mas o traduz para os dilemas contemporâneos da economia pelo viés dos aplicativos de serviços, das desigualdades sociais e da solidão urbana. Apesar de tropeçar em sua execução e em uma estrutura narrativa por vezes confusa, o longa sobrevive graças ao carisma de seu elenco e, sobretudo, à performance espirituosa de Keanu Reeves, que domina a tela com uma doçura quase angelical.

A história gira em torno de Arj, vivido pelo próprio Ansari, um trabalhador exausto e multifuncional que tenta sobreviver em uma sociedade que exige produtividade incessante e recompensa com migalhas. Ele dorme no carro, se divide entre entregas de comida e pequenos serviços de aplicativos e mantém uma rotina de cansaço e frustração que reflete a realidade de milhões de pessoas na era do trabalho precário. É nesse contexto que surge Gabriel, interpretado por Reeves, um anjo de categoria inferior encarregado de impedir acidentes de trânsito causados por distrações no celular. Observando a vida miserável de Arj, ele decide interferir no destino do rapaz, acreditando que pode guiá-lo de volta à esperança. 

O que se segue é uma comédia de troca de vidas à moda de “Trocando as Bolas”, com toques de “Freaky Friday”. Gabriel inverte o destino de Arj e de Jeff, um investidor arrogante interpretado por Seth Rogen, fazendo com que o pobre experimente a riqueza e o rico descubra as agruras da pobreza. O que começa como uma lição de moral sobre empatia rapidamente se transforma em uma sucessão de situações absurdas, com resultados imprevisíveis. A premissa, ainda que promissora, se perde em uma execução que ora flerta com a sátira social, ora com o sentimentalismo, sem jamais encontrar o equilíbrio entre as duas coisas.


Ansari tenta fazer de “Quando o céu se engana” uma parábola moderna sobre desigualdade e humanidade, mas a mensagem se dilui em meio a piadas que nem sempre funcionam e a um roteiro que parece mais preocupado em demonstrar boas intenções do que em construir uma narrativa sólida. Há momentos em que o filme se aproxima de uma crítica mordaz ao capitalismo tardio, mostrando como a pobreza corrói a dignidade e a esperança, mas logo em seguida recua para uma zona de conforto, optando por resoluções fáceis e sentimentalistas. O resultado é um filme que quer ser engraçado, comovente e politicamente relevante, mas raramente consegue ser as três coisas ao mesmo tempo.

Keanu Reeves, no entanto, é o coração e a alma do longa. Seu anjo Gabriel é uma figura de inocência desarmante, um ser celestial que, ao se tornar humano, experimenta pela primeira vez o sabor de um hambúrguer e o choque da vida real. Ver Reeves transitando entre a candura e o desencanto é uma das experiências mais agradáveis do filme. Ele se diverte com o papel e entrega uma performance que combina leveza cômica e melancolia, lembrando por que continua sendo um dos atores mais carismáticos do cinema contemporâneo. Sua transformação, da pureza angelical à humanidade imperfeita, fornece ao filme seu único arco emocional verdadeiramente convincente. 

Aziz Ansari, por sua vez, mantém o mesmo tom que o consagrou em “Master of None”: humor crítico, pequenas ironias e um olhar muito crítico sobre as contradições da vida moderna. No entanto, essa sensibilidade, que funciona tão bem em uma série intimista, se perde em um longa de alto conceito. Sua atuação é simpática, mas o personagem de Arj carece de profundidade e de uma trajetória convincente. Já Seth Rogen traz seu habitual carisma ao papel do magnata mimado, mas o roteiro o limita a um arco previsível de redenção. Keke Palmer, como a funcionária que tenta sindicalizar o local de trabalho e serve de contraponto moral à apatia de Arj, é interessante, mas subaproveitada.


A direção de Ansari é marcada por boas ideias visuais, especialmente nas cenas em que o anjo Gabriel observa o mundo humano do alto, com um olhar curioso e compassivo. No entanto, a montagem acelerada e as transições abruptas entre o realismo social e o humor denunciam a inexperiência do diretor em lidar com uma narrativa tão híbrida. O terceiro ato, em particular, parece apressado, como se Ansari não soubesse como encerrar sua fábula sem recorrer à obviedade. A conclusão, que tenta resgatar o espírito de “A felicidade não se compra”, carece da emoção genuína que o filme de Frank Capra transmitia com naturalidade.

Apesar de suas falhas, “Quando o céu se engana” é uma obra guiada por empatia. Há uma ternura sincera em sua tentativa de lembrar ao público que a compaixão e a solidariedade ainda são possíveis em um mundo regido pelo cinismo e pela desigualdade. A troca de vidas entre Arj e Jeff funciona como uma metáfora sobre o poder transformador da experiência e a importância de enxergar a humanidade no outro. Ainda que o filme não explore essa ideia com a profundidade necessária, sua intenção é louvável. 

Em tempos em que comédias originais se tornaram raras nas salas de cinema, o esforço de Ansari em devolver leveza e calor humano à grande tela merece reconhecimento. “Quando o céu se engana” é imperfeito, mas carrega um coração generoso. É engraçado em alguns momentos, desajeitado em outros, e nunca tão profundo quanto gostaria, mas seu otimismo singelo e a presença luminosa de Keanu Reeves o tornam uma experiência agradável e, por vezes, tocante. No fim, o filme nos lembra que, mesmo quando o céu erra, há beleza no esforço de tentar acertar.

22/10/2025

Crítica | Bom Menino

 


“Bom Menino” se destaca por trazer uma abordagem inusitada ao gênero de terror: a história é contada inteiramente pela perspectiva de um cachorro, Indy, fiel companheiro de Todd. A ideia de mostrar os eventos do ponto de vista do pet é certamente original e funciona como o ponto mais interessante do filme, permitindo que o público vivencie o sobrenatural de uma maneira diferente, observando detalhes que passariam despercebidos pelo olhar humano.

A narrativa, embora simples, consegue criar um certo mistério. O espectador é levado a imaginar o que realmente está acontecendo na mansão herdada pelo protagonista, especialmente com a atmosfera de casa assombrada que permeia o ambiente. A simplicidade da história, no entanto, é ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza: há momentos em que o filme parece se arrastar, e mesmo com apenas 70 minutos, a sensação é de que o tempo se alonga, justamente pela falta de acontecimentos mais dinâmicos.


O verdadeiro destaque é Indy. O cachorro domina cada cena em que aparece, com carisma e expressividade que chamam atenção constante. Suas reações, desde olhar fixamente para cantos vazios até investigar espaços sob móveis, exploram de forma divertida e curiosa os comportamentos caninos, fazendo com que o público repense o que seus próprios cães podem estar vendo. Se houvesse um Oscar para atuação canina, Indy seria um forte candidato: a mistura de medo e lealdade que transmite é impressionante.

No entanto, quem espera um terror de arrepiar vai se decepcionar. O trailer vende o filme como assustador, mas na prática ele falha em entregar sustos efetivos ou tensão consistente. A proposta é mais psicológica e contemplativa, e a ameaça sobrenatural é sugerida do que realmente explorada, tornando a experiência mais curiosa do que aterrorizante.


O roteiro deixa algumas lacunas que incentivam o público a criar suas próprias teorias sobre os acontecimentos, e o final aberto reforça essa sensação de mistério, oferecendo interpretações múltiplas sobre o que de fato ocorreu.

“Bom Menino” é um filme que encanta principalmente pelo charme e carisma do cachorro Indy e pela perspectiva criativa que oferece. Apesar da simplicidade da trama e da falta de sustos, é uma experiência interessante para quem aprecia histórias contadas de ângulos diferentes e momentos de ternura canina. Para fãs de cães e mistérios leves, é uma obra que vale a pena conferir; para quem busca terror intenso, talvez seja melhor ajustar as expectativas.

13/10/2025

Crítica | O Telefone Preto 2


O Telefone Preto 2 surge como uma sequência improvável, mas surpreendentemente eficaz, de um dos filmes de terror mais elogiados de 2021. O longa, novamente dirigido por Scott Derrickson e escrito por C. Robert Cargill, poderia facilmente ter se tornado mais uma tentativa oportunista de capitalizar o sucesso do original, mas o que se vê é uma obra que, embora se inspire fortemente nas linguagens visuais e narrativas do terror dos anos 1980, encontra uma identidade própria ao misturar horror sobrenatural, trauma psicológico e uma estética onírica que beira o surrealismo. O resultado é uma continuação ousada e perturbadora, que entende o legado que carrega e tenta, de forma consciente, reinventá-lo.

Ambientado em 1982, o filme retoma a história de Finney, o jovem sobrevivente do assassino em série conhecido como The Grabber. Anos depois dos eventos do primeiro longa, ele tenta lidar com o trauma de ter enfrentado o monstro que aterrorizou uma cidade inteira. Mason Thames retorna ao papel, agora interpretando um adolescente raivoso, confuso e emocionalmente fragmentado. O personagem busca entorpecer suas dores, enquanto os ecos do passado o perseguem em forma de telefones que continuam a tocar, mesmo desconectados. No entanto, é sua irmã Gwen, vivida por Madeleine McGraw, quem assume o protagonismo. A jovem, assombrada por pesadelos e visões intensas, passa a receber mensagens do além, estabelecendo uma conexão sobrenatural com a própria mãe falecida e com as almas perdidas de crianças assassinadas.

As visões de Gwen conduzem a trama para um novo cenário, um acampamento isolado nas montanhas conhecido como Alpine Lake, onde o passado da mãe e as novas manifestações do Grabber parecem convergir. Essa mudança de ambiente é um dos elementos mais interessantes da sequência, pois rompe com a atmosfera claustrofóbica do original e insere os personagens em um espaço aberto, coberto por neve, mas paradoxalmente ainda mais opressivo. Derrickson transforma o branco da paisagem em um reflexo da morte e da ausência, explorando o silêncio gelado da neve como um contraponto à constante presença do mal. É nesse ambiente que a fronteira entre sonho e realidade se dissolve, e o terror ganha uma dimensão quase metafísica.


A estética do filme reforça esse caráter onírico. As sequências de sonho e visões são filmadas com textura granulada, evocando o aspecto de fitas caseiras dos anos 80, o que amplia o clima nostálgico e reforça a sensação de estar preso dentro de uma memória corrompida. O uso desse artifício é deliberadamente excessivo, mas eficaz: cada pesadelo de Gwen parece um fragmento de um filme amaldiçoado, e isso contribui para que o espectador sinta o mesmo desconforto e confusão que a protagonista experimenta. Em diversos momentos, Derrickson demonstra domínio técnico ao construir imagens que são ao mesmo tempo belas e horripilantes, como a cena em que o rosto de uma criança se parte em dois sob um vidro de janela ou a sequência em que Finney é cercado por espíritos perdidos em meio à neve.

Ethan Hawke, de volta como The Grabber, aparece não mais como um ser humano, mas como uma entidade, um pesadelo materializado. Sua presença é etérea e infernal, uma mistura entre demônio e lembrança, evocando a figura de Freddy Krueger, com quem o personagem compartilha a capacidade de invadir sonhos e transformar o medo em força. O vilão deixa de ser apenas um assassino para se tornar uma metáfora do trauma que nunca desaparece. Hawke assume esse novo papel com uma intensidade assustadora, equilibrando loucura e dor de forma hipnótica.

O grande mérito de “O Telefone Preto 2” está em conseguir ser ao mesmo tempo uma homenagem e uma reinvenção. O filme abraça a influência de clássicos como “A Hora do Pesadelo” e “Curtains”, mas não se limita à imitação. Derrickson e Cargill compreendem o funcionamento simbólico desses filmes e aplicam suas lições a uma narrativa que fala sobre fé, culpa e redenção. Há uma forte presença de elementos teológicos, em especial na figura de Gwen e nas discussões sobre o bem e o mal, que acrescentam camadas inesperadas à trama. O diretor não teme introduzir a fé como elemento dramático, criando um curioso contraste entre a espiritualidade e o horror brutal que domina a história.


O elenco contribui de forma decisiva para o equilíbrio entre terror e emoção. Madeleine McGraw entrega uma performance impressionante, expressando vulnerabilidade e coragem com naturalidade. Mason Thames, por sua vez, retrata com sensibilidade o trauma e a raiva reprimida de um sobrevivente, tornando Finney um personagem tridimensional e complexo. O veterano Demian Bichir adiciona peso à narrativa como o supervisor do acampamento, um homem dividido entre o ceticismo e a fé. Sua presença confere humanidade ao ambiente assombrado, e sua atuação traz uma gravidade que contrapõe o surrealismo das cenas de horror.

Ainda que o filme seja narrativamente mais ambicioso que o original, ele também é mais irregular. O segundo ato sofre com explicações excessivas, que interrompem o fluxo da tensão e diluem parte do mistério. Há momentos em que o roteiro parece se perder em sua própria mitologia, tentando justificar demais o inexplicável. No entanto, essas falhas não comprometem o resultado final, pois o filme sempre se recupera com cenas visualmente marcantes e emocionalmente intensas. O clímax, ambientado sobre o gelo, é um dos pontos altos, misturando terror físico e simbolismo religioso em um confronto visualmente encantador.

“O Telefone Preto 2” se diferencia de tantas continuações do gênero justamente por recusar a repetição mecânica. Derrickson e Cargill preferem expandir o universo da história em vez de apenas revisitar fórmulas já testadas. O resultado é uma obra que combina jump scare, com uma exploração profunda da dor, da fé e da culpa. É um filme sobre fantasmas no sentido literal, mas também sobre os fantasmas emocionais que perseguem os vivos.

Ao final, o espectador é deixado com a sensação de ter assistido a um pesadelo melancólico, onde o medo não se dissipa com o amanhecer. “O Telefone Preto 2” é um raro exemplo de sequência que honra o original, amplia sua mitologia e ainda encontra espaço para ser autoral. É uma experiência perturbadora, carregada de beleza sombria e densidade emocional, que reafirma Scott Derrickson como um dos poucos diretores contemporâneos capazes de unir horror e poesia em uma mesma tela.

CRÍTICA | O Último Rodeio

O Último Rodeio é um drama emocional e inspirador que encontra força na simplicidade. Aprovado pela Angel Guild, o longa traz Neal McDonough em um de seus melhores papéis um cowboy veterano marcado pelo tempo, pela dor e por um passado repleto de arrependimentos. Aqui, ele interpreta Joe Wainwright, uma lenda do rodeio que decide sair da aposentadoria para salvar o neto, diagnosticado com um tumor cerebral agressivo e sem cobertura do plano de saúde.

Logo nos primeiros minutos, o filme conquista o público ao apresentar o drama familiar com intensidade. A dor e o desespero de Joe se tornam o motor da trama, que rapidamente ganha ritmo quando o velho montador decide retornar às arenas, mesmo mancando e sofrendo com dores na coluna. A cada passo, vemos não só o esforço físico, mas também o peso emocional de um homem tentando se redimir diante da vida e da filha com quem não era tão próximo.

Mykelti Williamson entrega uma performance carismática como o amigo e mentor que acompanha Joe nessa jornada. A relação entre os dois é natural e traz momentos de leveza e nostalgia, especialmente durante a pequena road trip até Tulsa, onde acontece o torneio das lendas. As conversas, os silêncios e as lembranças compartilhadas ajudam a construir a profundidade emocional do filme, que alterna bem entre momentos de reflexão e cenas mais intensas.

As cenas de montaria em touros são muito bem executadas e carregadas de tensão. A direção consegue transmitir o perigo e o impacto físico desse esporte, deixando o público aflito a cada segundo que Joe permanece sobre o animal. O realismo das tomadas e o bom uso da câmera lenta reforçam o peso de cada queda, transformando o rodeio em uma metáfora para a luta e a resistência.

A fotografia é outro ponto de destaque. Com belos enquadramentos do interior americano, o filme equilibra tons quentes e paisagens amplas que simbolizam tanto a solidão do protagonista quanto a imensidão de sua jornada pessoal. Cada cena parece cuidadosamente iluminada para reforçar o contraste entre o passado e o presente, a glória e a dor.

O roteiro é simples, mas eficiente. A narrativa se desenvolve de forma dinâmica e mantém o espectador envolvido até o fim, sem enrolações ou desvios desnecessários. A trilha sonora entra sempre no momento certo, pontuando as emoções e reforçando o clima de superação.


Mais do que um filme sobre rodeios, O Último Rodeio é uma história sobre fé, coragem e amor familiar. É sobre enfrentar as perdas e lutar pelo que realmente importa. Embora não traga grandes surpresas ou inovações, cumpre bem o papel de emocionar e inspirar.

O Último Rodeio é um filme sincero e comovente daqueles que tocam o coração sem precisar de artifícios. Emociona, mas não ousa. E talvez seja justamente essa honestidade que o torna tão cativante.

09/10/2025

Crítica | Tron Ares


Mais de uma década após Tron: O Legado, a franquia retorna em Tron: Ares tentando atualizar sua proposta para a era da Inteligência Artificial. Dirigido por Joachim Rønning, o longa traz Jared Leto como Ares, um programa digital que é transportado ao mundo real em uma missão que coloca à prova sua própria lógica e identidade. A premissa, embora promissora, revela-se um reflexo direto das tensões do cinema contemporâneo: a tentativa de equilibrar nostalgia, tecnologia de ponta e relevância temática acaba gerando um resultado irregular.

Desde o início, o filme demonstra preocupação em conectar-se com os avanços tecnológicos e as discussões atuais sobre IA, mas faz isso de maneira superficial. A narrativa até insinua questionamentos sobre consciência, livre-arbítrio e os limites da humanidade diante das máquinas, contudo, essas ideias são rapidamente substituídas por conflitos emocionais previsíveis e dramas familiares artificiais. O roteiro prefere caminhar em terreno seguro, reproduzindo fórmulas já exploradas por outras obras do gênero, sem oferecer uma nova interpretação ou um ponto de vista autoral.


Jared Leto entrega uma atuação fria, quase apática, que não favorece o arco emocional de Ares. A construção do personagem, que poderia explorar dilemas existenciais ou morais de forma mais profunda, se perde em gestos mecânicos e falas carregadas de obviedade. Em contrapartida, Greta Lee se destaca ao trazer nuances e humanidade para suas cenas, equilibrando o peso dramático com sutileza. Evan Peters, embora subaproveitado, injeta energia quando o filme mais precisa de dinamismo.

Visualmente, Tron: Ares mantém o padrão estético da franquia, com uma direção de arte impressionante e uma fotografia que brinca com contrastes entre o real e o digital. As sequências de ação são o ponto alto, fluidas, bem coreografadas e impulsionadas por uma trilha sonora envolvente que mantém viva a tradição sonora da série. Assistido em IMAX, o filme ganha impacto e amplitude, tornando-se uma experiência sensorial potente.


Ainda assim, o que poderia ser uma exploração instigante sobre o papel da tecnologia na construção da identidade humana se transforma em um espetáculo visual mais preocupado em repetir do que em reinventar. Ares surge como uma metáfora desperdiçada, um ser artificial que busca propósito em um roteiro igualmente automatizado.

Tron: Ares é, em essência, um produto de sua época: tecnicamente deslumbrante, mas emocionalmente vazio. Funciona como entretenimento e entrega o que o público da franquia espera: luzes, ritmo e nostalgia, mas carece de ousadia para propor algo realmente novo. É um retorno vistoso, porém sem alma, que confirma tanto a força estética da marca Tron quanto os limites criativos do blockbuster contemporâneo.

01/10/2025

Crítica | Perrengue Fashion


Perrengue Fashion, novo longa estrelado por Ingrid Guimarães, chega aos cinemas com a promessa de unir humor, crítica social e um olhar contemporâneo sobre influenciadores digitais e sustentabilidade. O filme, que marca a primeira produção brasileira da Amazon MGM Studios, inicialmente pensado para o streaming, ganha lançamento nas telonas após o sucesso de outras produções nacionais recentes. O resultado é uma comédia leve, com boas atuações e um apelo popular inegável, embora o enredo careça de maior consistência dramática.

A trama acompanha Paula Pratta (Ingrid Guimarães), uma influenciadora de moda que sonha em consolidar sua carreira com uma grande campanha publicitária. A chance surge quando a Gucci a convida para uma ação de Dia das Mães, mas com uma condição: a participação de seu filho Cadu (Filipe Bragança). O problema é que o jovem abandonou a vida acadêmica nos Estados Unidos para viver em uma ecovila na Amazônia, dedicado ao ativismo ambiental. O choque entre a mãe focada no mundo das aparências digitais e o filho engajado em causas ambientais gera o conflito central do filme.

Se o atrito entre Paula e Cadu parece pouco robusto para sustentar a narrativa, Ingrid Guimarães consegue imprimir carisma à personagem, transformando situações banais em momentos de graça genuína. A atriz, que se consolidou como um dos grandes nomes da comédia nacional, não depende de exageros ou caricaturas e encontra espaço para que seu talento apareça sem vaidade. Ao seu lado, Rafa Chalub estreia no cinema de forma surpreendente como Taylor, o dedicado assistente que funciona como alívio cômico e contraponto ao drama familiar. A sintonia entre os dois sustenta o filme, mesmo quando o roteiro tropeça em soluções simplistas.  


O roteiro evita cair no humor grosseiro ou em estereótipos ofensivos, preferindo uma abordagem mais respeitosa, mesmo ao lidar com influenciadores, ambientalistas e povos indígenas. Há situações engraçadas que exploram choques culturais sem cair na ridicularização, como quando Paula expressa de forma direta seu desagrado pela culinária local ou quando Taylor arrisca uma cantada inesperada no cacique da aldeia. Essas escolhas distinguem Perrengue Fashion de outras comédias nacionais que ainda apostam em piadas vulgares.

Apesar do potencial temático, o filme opta por não se aprofundar em questões mais complexas. O ativismo de Cadu aparece como pano de fundo, e o arco de transformação de Paula se dá de maneira previsível, marcada por pequenas epifanias ao longo da jornada. Até mesmo o momento em que um ritual indígena poderia revelar um trauma de infância da protagonista é tratado de forma superficial, sem mergulhar nas camadas psicológicas que poderiam enriquecer a narrativa. 


Na direção, Flávia Lacerda demonstra segurança em seu primeiro trabalho solo, conduzindo a história com ritmo leve e privilegiando o humor. A cineasta sabe explorar as locações da Amazônia, ainda que abuse das montagens rápidas e colagens de planos para dinamizar a trama. O filme também ganha pontos por sua boa produção, reforçando o investimento em conteúdos nacionais com potencial de mercado.

Perrengue Fashion funciona sobretudo como um veículo para o talento de Ingrid Guimarães, que mais uma vez comprova seu domínio da comédia popular. Embora não ofereça grandes surpresas ou profundidade dramática, o longa diverte, apresenta boas atuações e se destaca por abordar de forma bem-humorada temas atuais como redes sociais e consciência ambiental. O público que busca uma comédia leve, despretensiosa e bem produzida encontrará aqui um entretenimento seguro, capaz de gerar boas risadas e, de quebra, provocar pequenas reflexões sobre valores familiares e prioridades pessoais.