11/12/2025

Crítica | Família de Aluguel

Família de aluguel é um daqueles filmes cuja premissa, à primeira vista, parece delicada demais para funcionar sem deslizar para o sentimentalismo barato ou para o constrangimento absoluto. A obra de Hikari, no entanto, demonstra desde os primeiros minutos uma habilidade admirável em equilibrar drama, humor e melancolia com uma sensibilidade rara. Em vez de explorar a ideia excêntrica das empresas japonesas que alugam atores para interpretar familiares, parceiros ou colegas de trabalho como mero artifício cômico, o filme constrói um estudo de personagem profundo e humano, sustentado por um entendimento genuíno das carências emocionais e da solidão que permeiam a vida moderna. Se a história se apoiasse apenas no inusitado do conceito, provavelmente não passaria de uma curiosidade divertida. Mas Hikari transforma essa excentricidade cultural em base para reflexões tocantes sobre identidade, afeto e pertencimento, conduzidas por uma direção que confia no poder da observação silenciosa e do cotidiano.

Brendan Fraser entrega uma atuação delicada e surpreendentemente vulnerável como Phillip Vandarploueg, um ator norte-americano que se estabeleceu no Japão quase por inércia, preso entre uma carreira medíocre e a incapacidade de retornar ao país onde já não tem vínculos afetivos. Fraser encarna um homem que tenta se dissolver no anonimato de Tóquio, fluente na língua e nos códigos sociais, mas permanentemente deslocado, alguém que observa vidas alheias da janela como quem assiste a um programa sobre um mundo que nunca fará parte do seu. É impossível não pensar em Bob Harris, de “Encontros e Desencontros”, mas Phillip é menos irônico e mais quebrado por dentro, alguém cuja existência tornou-se tão rarefeita que precisa interpretar papéis para lembrar que ainda há sentido em estar vivo. A melancolia do personagem, acentuada pela fotografia luminosa e diurna de Takurô Ishizaka, contrapõe-se ao retrato usual de Tóquio como metrópole noturna e deslumbrante, e reforça a sensação de que Phillip habita uma cidade que nunca o absorve completamente.

As primeiras tarefas de Phillip na empresa “Rental Family” estabelecem com humor e estranheza o tom agridoce do filme. Ele interpreta um noivo fictício para que uma jovem mantenha as aparências diante dos pais, um ocidental desconhecido que lamenta em voz alta um morto num funeral encenado e até o melhor amigo temporário de um homem solitário. Cada situação é cômica na superfície, mas carregada de implicações emocionais sutis, revelando como a solidão pode levar as pessoas a buscar afeto, validação ou paz através de pequenas mentiras encenadas. A colega de trabalho Aiko, interpretada com melancolia por Mari Yamamoto, carrega as tarefas mais moralmente dolorosas, como se passar por amante de homens infiéis, e suas interações com Phillip ampliam a dimensão social do filme, lembrando que esse mercado de emoções terceirizadas existe porque a comunicação real entre as pessoas frequentemente falha.

Mas é quando Phillip é contratado para dois trabalhos mais delicados que o filme encontra sua espinha dorsal emocional. No primeiro, ele se passa por um jornalista entrevistando um ator idoso e esquecido interpretado de forma sublime por Akira Emoto, cuja fragilidade e dignidade fazem da relação entre os dois um dos momentos mais sensíveis da narrativa. O segundo, mais complexo e perturbador, envolve interpretar o pai ausente de Mia, uma menina de 11 anos cuja mãe quer aumentar as chances de sua aprovação em uma escola prestigiada. A situação, desde o início, provoca desconforto profundo, porque Hikari não tenta suavizar o fato de que tal decisão é emocionalmente perigosa para a criança e eticamente duvidosa para todos os envolvidos. Ainda assim, o vínculo que surge entre Phillip e Mia é filmado com uma doçura cautelosa e uma tristeza que se acumula lentamente, preparando o público para a inevitabilidade da ruptura. A beleza da relação reside justamente no paradoxo: o afeto entre os dois é real, mas a pessoa que Mia admira é uma ficção, um papel. O filme não oferece respostas fáceis, nem tenta transformar a trama em uma história edificante, e sua força vem dessa recusa em seguir caminhos previsíveis.

Se “Família de Aluguel” às vezes flerta com um sentimentalismo que poderia soar excessivo, ele o faz de maneira consciente e controlada, quase como uma homenagem aos dramas humanos. O roteiro costura momentos de humor e leveza com reflexões singelas sobre as máscaras sociais que todos usamos, evocando a famosa frase de Marlon Brando de que “todos somos atores e mentimos diariamente para navegar a vida”. Phillip vive o extremo dessa metáfora, descobrindo em seus papéis justamente aquilo que falta em sua vida real. Quando começa a subverter as regras da empresa em nome de compaixão genuína, o filme expande seu foco para discutir as fronteiras entre atuação, empatia e responsabilidade moral. Hikari dirige essas passagens com discrição e humanidade, permitindo que os atores respirem e que as situações se desenrolem com naturalidade.

Fraser, embora mergulhado em uma tristeza que às vezes parece excessiva para o tom, revela camadas que o afastam do melodrama. Sua interpretação transmite a sensação de um homem que fracassou tantas vezes que já não sabe distinguir o que é atuação e o que é vida, e essa confusão se torna o cerne de sua jornada emocional. O filme, porém, poderia ter se beneficiado de um protagonista menos taciturno, já que certos momentos pedem nuances que a melancolia constante de Fraser não alcança totalmente. Ainda assim, sua performance se mantém honesta e coerente com o espírito da obra, especialmente quando interage com Mia, criando um dos pares mais comoventes do cinema na atualidade.

O longa “Família de Aluguel” é um filme sensível, construído com cuidado e disposto a abraçar tanto a estranheza quanto a ternura inerentes ao tema. Explora a solidão contemporânea sem julgamento e com profunda curiosidade, revelando como seres humanos constroem pequenas ficções para suportar a realidade e como, às vezes, essas ficções podem revelar verdades que não ousamos admitir. Em seu melhor, a obra combina observação social, humor melancólico e uma ternura muito autêntica, oferecendo ao público uma narrativa que permanece na memória pela forma sutil como lida com temas delicados. Não é apenas uma história sobre pessoas que alugam famílias, e sim sobre indivíduos que tentam desesperadamente encontrar um lugar para existir, mesmo que esse lugar precise ser inventado. É um filme que entende a dor silenciosa da solidão e a necessidade universal de conexão, e o faz com graça, compaixão e honestidade emocional.

Crítica | Asa Branca - A Voz da Arena

A cinebiografia “Asa Branca – A Voz da Arena” se constrói sobre um terreno conhecido do público: a jornada de um herói moldada pelo paradigma narrativo amplamente conhecido neste universo de rodeios do Brasil. Tal estrutura, repetida por décadas, carrega consigo uma previsibilidade que pode tanto garantir reconhecimento emocional quanto aprisionar uma obra em fórmulas já desgastadas. O filme dirigido por Guga Sander se insere exatamente nesse dilema. A trajetória de Asa Branca, uma das figuras mais emblemáticas da cultura dos rodeios no Brasil, é apresentada sob o recorte convencional do nascimento, queda, redenção e triunfo, emoldurada por um tom otimista que muitas vezes suaviza excessivamente a dureza da vida real do personagem. Há solenidade no tratamento dado à sua história, mas há também uma sensação constante de que a narrativa opta por uma versão fantasiosa, higienizada e confortável de um homem cuja existência foi marcada por conflitos mais profundos e menos glamourizados.

O filme acompanha Asa desde o acidente que coloca fim à carreira como peão até seu renascimento como locutor e grande estrela da arena. Nesse percurso, surgem elementos típicos das cinebiografias clássicas: o mentor que aponta caminhos, os amigos que sustentam emocionalmente o protagonista, a mulher que simboliza amor, pureza e estabilidade afetiva, e os demônios interiores que ameaçam sua ascensão. Tudo é apresentado com competência técnica e narrativa, mas dificilmente escapa do previsível. A decadência e a redenção do protagonista surgem como marcos narrativos fáceis, resolvidos de maneira rápida demais, como se a própria estrutura exigisse um progresso constante e linear, impedindo o filme de explorar a ambiguidade e complexidade emocional que tornaram Asa Branca um personagem realmente inesquecível.

Ainda assim, há um cuidado estético considerável. A edição recorre a mudanças de frame, sobreposições de imagem e uma paleta quente que valoriza o tom alaranjado do entardecer e a luminosidade intensa da arena. Essa escolha cria uma atmosfera pertinente, que ora romantiza a vida no campo, ora dramatiza o espetáculo do rodeio. A fotografia se torna não apenas pano de fundo, mas parte essencial da construção da mítica que envolve o protagonista. Mesmo assim, esse refinamento visual contrasta com a sensação geral de que o filme opera dentro de uma armadura narrativa rígida, sem se permitir ousar no mesmo nível em que ousa ao compor sua estética.

Apesar desses limites, “Asa Branca – A Voz da Arena” ganha força através da interpretação de Felipe Simas. O ator compreende a intensidade impulsiva, orgulhosa e vulnerável do personagem e entrega um trabalho que supera a previsibilidade do roteiro. Seu Asa é humano, falho, movido por paixão e ego, dividido entre o fascínio da fama e o desejo por um amor verdadeiro. No entanto, mesmo com sua entrega evidente, é possível sentir que a própria direção do filme impõe certa contenção emocional, preferindo manter o protagonista dentro de uma moldura heroica clássica, em vez de mergulhar mais profundamente em suas sombras.

A obra não se limita apenas a contar a história de um homem, mas a traduzir para a tela a atmosfera do rodeio, seus bastidores, sua dramaturgia e seu ritual coletivo. O espectador que nunca pisou em uma arena é conduzido por imagens que transmitem calor, poeira, risco e espetáculo. A construção desse ambiente é um dos pontos mais fortes do filme, capaz de despertar curiosidade, nostalgia e até mesmo a vontade de pesquisar mais sobre a vida real de Asa Branca. Essa capacidade de gerar interesse posterior, de mover o público para além da conclusão da narrativa, é sinal de que o filme, mesmo preso a fórmulas, encontra maneiras de se manter vivo na memória.


No entanto, quando observamos a obra como cinebiografia, torna-se evidente que o filme adota um tom fabular, suavizando controvérsias e escolhas dolorosas do protagonista real. A jornada é tratada mais como lenda do que como reconstrução histórica. Isso acarreta certa idealização, que funciona para criar identificação emocional, mas enfraquece a profundidade dramática. A versão mostrada em tela se aproxima de uma epopeia nacional, exaltando um herói que transformou o rodeio em espetáculo e elevou a figura do locutor ao patamar de estrela. Ainda assim, essa elevação narrativa resulta em uma obra que parece mais interessada em reforçar o mito do que em compreender o homem por trás dele. 

Asa Branca – A Voz da Arena é um filme que divide suas potências entre técnica, emoção e limitação narrativa. Ele não inova na linguagem, não desafia convenções e tampouco aprofunda as contradições de seu protagonista. Mas entrega um espetáculo competente, visualmente marcante e culturalmente relevante, capaz de despertar orgulho pela produção nacional e de conduzir o espectador a revisitar a história real que inspirou a obra. É um filme que agrada, emociona e entretém, mesmo sem revolucionar. Seu maior legado talvez seja oferecer uma porta de entrada para que mais pessoas conheçam e valorizem uma figura importante da cultura brasileira e para que o cinema nacional continue explorando histórias que são tão nossas quanto as arenas iluminadas que Asa Branca eternizou com sua voz.

04/12/2025

CRÍTICA | Five Nights at Freddy’s 2

Five Nights at Freddy’s 2 chega aos cinemas carregando a responsabilidade de ampliar um universo que, apesar da recepção dividida do primeiro filme, conquistou um público fiel. A continuação assume essa ambição ao expandir o lore da famosa pizzaria assombrada e ao levar os animatrônicos a novos cenários, ao mesmo tempo em que busca uma história mais sombria. Um ano após o massacre que virou lenda urbana, o filme resgata o trauma da cidade e coloca Abby no centro de um novo ciclo de mistério e horror, mantendo o foco no elo emocional que ela desenvolve com Freddy e companhia.

A trama repete a estrutura enxuta do original, algo que pode agradar quem prefere narrativas mais diretas. O roteiro investe na atmosfera de tensão e no retorno dos personagens Mike e Vanessa, que agora tentam esconder verdades perigosas enquanto Abby é atraída pelo chamado dos animatrônicos. O filme se propõe a aprofundar a origem trágica da pizzaria, revelando novos elementos do passado que ajudam a conectar peças soltas do primeiro capítulo. Essa ampliação funciona principalmente para fãs do jogo, que vão reconhecer detalhes, referências e símbolos espalhados pela história.


Apesar dessa expansão, o longa ainda sofre com limitações já percebidas na obra anterior. A abordagem PG-13 reduz a intensidade do horror e dilui o impacto de situações que poderiam ser muito mais perturbadoras. Há bons momentos de susto e algumas sequências visualmente marcantes, mas a sensação geral é de que o filme evita ir fundo demais para não afastar o público mais jovem. Isso cria um contraste entre a promessa de um terror mais agressivo e a entrega real, que permanece contida e previsível.

Outro ponto que compromete a força da narrativa é a falta de evolução dos personagens. Mesmo com novas camadas sobre o passado de Freddy’s, os arcos emocionais pouco avançam, e a dinâmica entre Mike, Vanessa e Abby segue limitada por diálogos expositivos. A protagonista infantil tem bons momentos, especialmente ao interagir com os animatrônicos, mas o filme nem sempre aproveita o potencial dramático dessas cenas. Em várias partes, a história privilegia o fan service em detrimento de uma construção dramática mais sólida.


Por outro lado, é inegável que a sequência cumpre bem seu papel como entretenimento para fãs da franquia. Os animatrônicos continuam sendo o grande destaque, impressionantes em tela, assustadores na medida certa e responsáveis pelos momentos mais memoráveis do filme. A direção amplia o escopo visual, adiciona novos ambientes e cria um ritmo que, mesmo irregular, mantém o espectador engajado. O final, claramente pensado para preparar novos capítulos, reforça a sensação de que o universo FNAF está sendo construído com cautela e longe de estar perto da conclusão.

No balanço geral, Five Nights at Freddy’s 2 não revoluciona sua própria fórmula, mas aperfeiçoa aspectos técnicos e entrega exatamente o que quem gostou do primeiro espera: mais animatrônicos, mais mitologia, mais sustos leves e mais pistas para o futuro da franquia. Falta profundidade e ousadia, mas sobra fidelidade ao seu público. É um filme que diverte, mesmo sem surpreender, e que reforça o caminho comercial da série como um fenômeno de cultura pop antes de ser uma obra de horror verdadeiramente impactante.