11/12/2025

Crítica | Família de Aluguel

Família de aluguel é um daqueles filmes cuja premissa, à primeira vista, parece delicada demais para funcionar sem deslizar para o sentimentalismo barato ou para o constrangimento absoluto. A obra de Hikari, no entanto, demonstra desde os primeiros minutos uma habilidade admirável em equilibrar drama, humor e melancolia com uma sensibilidade rara. Em vez de explorar a ideia excêntrica das empresas japonesas que alugam atores para interpretar familiares, parceiros ou colegas de trabalho como mero artifício cômico, o filme constrói um estudo de personagem profundo e humano, sustentado por um entendimento genuíno das carências emocionais e da solidão que permeiam a vida moderna. Se a história se apoiasse apenas no inusitado do conceito, provavelmente não passaria de uma curiosidade divertida. Mas Hikari transforma essa excentricidade cultural em base para reflexões tocantes sobre identidade, afeto e pertencimento, conduzidas por uma direção que confia no poder da observação silenciosa e do cotidiano.

Brendan Fraser entrega uma atuação delicada e surpreendentemente vulnerável como Phillip Vandarploueg, um ator norte-americano que se estabeleceu no Japão quase por inércia, preso entre uma carreira medíocre e a incapacidade de retornar ao país onde já não tem vínculos afetivos. Fraser encarna um homem que tenta se dissolver no anonimato de Tóquio, fluente na língua e nos códigos sociais, mas permanentemente deslocado, alguém que observa vidas alheias da janela como quem assiste a um programa sobre um mundo que nunca fará parte do seu. É impossível não pensar em Bob Harris, de “Encontros e Desencontros”, mas Phillip é menos irônico e mais quebrado por dentro, alguém cuja existência tornou-se tão rarefeita que precisa interpretar papéis para lembrar que ainda há sentido em estar vivo. A melancolia do personagem, acentuada pela fotografia luminosa e diurna de Takurô Ishizaka, contrapõe-se ao retrato usual de Tóquio como metrópole noturna e deslumbrante, e reforça a sensação de que Phillip habita uma cidade que nunca o absorve completamente.

As primeiras tarefas de Phillip na empresa “Rental Family” estabelecem com humor e estranheza o tom agridoce do filme. Ele interpreta um noivo fictício para que uma jovem mantenha as aparências diante dos pais, um ocidental desconhecido que lamenta em voz alta um morto num funeral encenado e até o melhor amigo temporário de um homem solitário. Cada situação é cômica na superfície, mas carregada de implicações emocionais sutis, revelando como a solidão pode levar as pessoas a buscar afeto, validação ou paz através de pequenas mentiras encenadas. A colega de trabalho Aiko, interpretada com melancolia por Mari Yamamoto, carrega as tarefas mais moralmente dolorosas, como se passar por amante de homens infiéis, e suas interações com Phillip ampliam a dimensão social do filme, lembrando que esse mercado de emoções terceirizadas existe porque a comunicação real entre as pessoas frequentemente falha.

Mas é quando Phillip é contratado para dois trabalhos mais delicados que o filme encontra sua espinha dorsal emocional. No primeiro, ele se passa por um jornalista entrevistando um ator idoso e esquecido interpretado de forma sublime por Akira Emoto, cuja fragilidade e dignidade fazem da relação entre os dois um dos momentos mais sensíveis da narrativa. O segundo, mais complexo e perturbador, envolve interpretar o pai ausente de Mia, uma menina de 11 anos cuja mãe quer aumentar as chances de sua aprovação em uma escola prestigiada. A situação, desde o início, provoca desconforto profundo, porque Hikari não tenta suavizar o fato de que tal decisão é emocionalmente perigosa para a criança e eticamente duvidosa para todos os envolvidos. Ainda assim, o vínculo que surge entre Phillip e Mia é filmado com uma doçura cautelosa e uma tristeza que se acumula lentamente, preparando o público para a inevitabilidade da ruptura. A beleza da relação reside justamente no paradoxo: o afeto entre os dois é real, mas a pessoa que Mia admira é uma ficção, um papel. O filme não oferece respostas fáceis, nem tenta transformar a trama em uma história edificante, e sua força vem dessa recusa em seguir caminhos previsíveis.

Se “Família de Aluguel” às vezes flerta com um sentimentalismo que poderia soar excessivo, ele o faz de maneira consciente e controlada, quase como uma homenagem aos dramas humanos. O roteiro costura momentos de humor e leveza com reflexões singelas sobre as máscaras sociais que todos usamos, evocando a famosa frase de Marlon Brando de que “todos somos atores e mentimos diariamente para navegar a vida”. Phillip vive o extremo dessa metáfora, descobrindo em seus papéis justamente aquilo que falta em sua vida real. Quando começa a subverter as regras da empresa em nome de compaixão genuína, o filme expande seu foco para discutir as fronteiras entre atuação, empatia e responsabilidade moral. Hikari dirige essas passagens com discrição e humanidade, permitindo que os atores respirem e que as situações se desenrolem com naturalidade.

Fraser, embora mergulhado em uma tristeza que às vezes parece excessiva para o tom, revela camadas que o afastam do melodrama. Sua interpretação transmite a sensação de um homem que fracassou tantas vezes que já não sabe distinguir o que é atuação e o que é vida, e essa confusão se torna o cerne de sua jornada emocional. O filme, porém, poderia ter se beneficiado de um protagonista menos taciturno, já que certos momentos pedem nuances que a melancolia constante de Fraser não alcança totalmente. Ainda assim, sua performance se mantém honesta e coerente com o espírito da obra, especialmente quando interage com Mia, criando um dos pares mais comoventes do cinema na atualidade.

O longa “Família de Aluguel” é um filme sensível, construído com cuidado e disposto a abraçar tanto a estranheza quanto a ternura inerentes ao tema. Explora a solidão contemporânea sem julgamento e com profunda curiosidade, revelando como seres humanos constroem pequenas ficções para suportar a realidade e como, às vezes, essas ficções podem revelar verdades que não ousamos admitir. Em seu melhor, a obra combina observação social, humor melancólico e uma ternura muito autêntica, oferecendo ao público uma narrativa que permanece na memória pela forma sutil como lida com temas delicados. Não é apenas uma história sobre pessoas que alugam famílias, e sim sobre indivíduos que tentam desesperadamente encontrar um lugar para existir, mesmo que esse lugar precise ser inventado. É um filme que entende a dor silenciosa da solidão e a necessidade universal de conexão, e o faz com graça, compaixão e honestidade emocional.

Crítica | Asa Branca - A Voz da Arena

A cinebiografia “Asa Branca – A Voz da Arena” se constrói sobre um terreno conhecido do público: a jornada de um herói moldada pelo paradigma narrativo amplamente conhecido neste universo de rodeios do Brasil. Tal estrutura, repetida por décadas, carrega consigo uma previsibilidade que pode tanto garantir reconhecimento emocional quanto aprisionar uma obra em fórmulas já desgastadas. O filme dirigido por Guga Sander se insere exatamente nesse dilema. A trajetória de Asa Branca, uma das figuras mais emblemáticas da cultura dos rodeios no Brasil, é apresentada sob o recorte convencional do nascimento, queda, redenção e triunfo, emoldurada por um tom otimista que muitas vezes suaviza excessivamente a dureza da vida real do personagem. Há solenidade no tratamento dado à sua história, mas há também uma sensação constante de que a narrativa opta por uma versão fantasiosa, higienizada e confortável de um homem cuja existência foi marcada por conflitos mais profundos e menos glamourizados.

O filme acompanha Asa desde o acidente que coloca fim à carreira como peão até seu renascimento como locutor e grande estrela da arena. Nesse percurso, surgem elementos típicos das cinebiografias clássicas: o mentor que aponta caminhos, os amigos que sustentam emocionalmente o protagonista, a mulher que simboliza amor, pureza e estabilidade afetiva, e os demônios interiores que ameaçam sua ascensão. Tudo é apresentado com competência técnica e narrativa, mas dificilmente escapa do previsível. A decadência e a redenção do protagonista surgem como marcos narrativos fáceis, resolvidos de maneira rápida demais, como se a própria estrutura exigisse um progresso constante e linear, impedindo o filme de explorar a ambiguidade e complexidade emocional que tornaram Asa Branca um personagem realmente inesquecível.

Ainda assim, há um cuidado estético considerável. A edição recorre a mudanças de frame, sobreposições de imagem e uma paleta quente que valoriza o tom alaranjado do entardecer e a luminosidade intensa da arena. Essa escolha cria uma atmosfera pertinente, que ora romantiza a vida no campo, ora dramatiza o espetáculo do rodeio. A fotografia se torna não apenas pano de fundo, mas parte essencial da construção da mítica que envolve o protagonista. Mesmo assim, esse refinamento visual contrasta com a sensação geral de que o filme opera dentro de uma armadura narrativa rígida, sem se permitir ousar no mesmo nível em que ousa ao compor sua estética.

Apesar desses limites, “Asa Branca – A Voz da Arena” ganha força através da interpretação de Felipe Simas. O ator compreende a intensidade impulsiva, orgulhosa e vulnerável do personagem e entrega um trabalho que supera a previsibilidade do roteiro. Seu Asa é humano, falho, movido por paixão e ego, dividido entre o fascínio da fama e o desejo por um amor verdadeiro. No entanto, mesmo com sua entrega evidente, é possível sentir que a própria direção do filme impõe certa contenção emocional, preferindo manter o protagonista dentro de uma moldura heroica clássica, em vez de mergulhar mais profundamente em suas sombras.

A obra não se limita apenas a contar a história de um homem, mas a traduzir para a tela a atmosfera do rodeio, seus bastidores, sua dramaturgia e seu ritual coletivo. O espectador que nunca pisou em uma arena é conduzido por imagens que transmitem calor, poeira, risco e espetáculo. A construção desse ambiente é um dos pontos mais fortes do filme, capaz de despertar curiosidade, nostalgia e até mesmo a vontade de pesquisar mais sobre a vida real de Asa Branca. Essa capacidade de gerar interesse posterior, de mover o público para além da conclusão da narrativa, é sinal de que o filme, mesmo preso a fórmulas, encontra maneiras de se manter vivo na memória.


No entanto, quando observamos a obra como cinebiografia, torna-se evidente que o filme adota um tom fabular, suavizando controvérsias e escolhas dolorosas do protagonista real. A jornada é tratada mais como lenda do que como reconstrução histórica. Isso acarreta certa idealização, que funciona para criar identificação emocional, mas enfraquece a profundidade dramática. A versão mostrada em tela se aproxima de uma epopeia nacional, exaltando um herói que transformou o rodeio em espetáculo e elevou a figura do locutor ao patamar de estrela. Ainda assim, essa elevação narrativa resulta em uma obra que parece mais interessada em reforçar o mito do que em compreender o homem por trás dele. 

Asa Branca – A Voz da Arena é um filme que divide suas potências entre técnica, emoção e limitação narrativa. Ele não inova na linguagem, não desafia convenções e tampouco aprofunda as contradições de seu protagonista. Mas entrega um espetáculo competente, visualmente marcante e culturalmente relevante, capaz de despertar orgulho pela produção nacional e de conduzir o espectador a revisitar a história real que inspirou a obra. É um filme que agrada, emociona e entretém, mesmo sem revolucionar. Seu maior legado talvez seja oferecer uma porta de entrada para que mais pessoas conheçam e valorizem uma figura importante da cultura brasileira e para que o cinema nacional continue explorando histórias que são tão nossas quanto as arenas iluminadas que Asa Branca eternizou com sua voz.

04/12/2025

CRÍTICA | Five Nights at Freddy’s 2

Five Nights at Freddy’s 2 chega aos cinemas carregando a responsabilidade de ampliar um universo que, apesar da recepção dividida do primeiro filme, conquistou um público fiel. A continuação assume essa ambição ao expandir o lore da famosa pizzaria assombrada e ao levar os animatrônicos a novos cenários, ao mesmo tempo em que busca uma história mais sombria. Um ano após o massacre que virou lenda urbana, o filme resgata o trauma da cidade e coloca Abby no centro de um novo ciclo de mistério e horror, mantendo o foco no elo emocional que ela desenvolve com Freddy e companhia.

A trama repete a estrutura enxuta do original, algo que pode agradar quem prefere narrativas mais diretas. O roteiro investe na atmosfera de tensão e no retorno dos personagens Mike e Vanessa, que agora tentam esconder verdades perigosas enquanto Abby é atraída pelo chamado dos animatrônicos. O filme se propõe a aprofundar a origem trágica da pizzaria, revelando novos elementos do passado que ajudam a conectar peças soltas do primeiro capítulo. Essa ampliação funciona principalmente para fãs do jogo, que vão reconhecer detalhes, referências e símbolos espalhados pela história.


Apesar dessa expansão, o longa ainda sofre com limitações já percebidas na obra anterior. A abordagem PG-13 reduz a intensidade do horror e dilui o impacto de situações que poderiam ser muito mais perturbadoras. Há bons momentos de susto e algumas sequências visualmente marcantes, mas a sensação geral é de que o filme evita ir fundo demais para não afastar o público mais jovem. Isso cria um contraste entre a promessa de um terror mais agressivo e a entrega real, que permanece contida e previsível.

Outro ponto que compromete a força da narrativa é a falta de evolução dos personagens. Mesmo com novas camadas sobre o passado de Freddy’s, os arcos emocionais pouco avançam, e a dinâmica entre Mike, Vanessa e Abby segue limitada por diálogos expositivos. A protagonista infantil tem bons momentos, especialmente ao interagir com os animatrônicos, mas o filme nem sempre aproveita o potencial dramático dessas cenas. Em várias partes, a história privilegia o fan service em detrimento de uma construção dramática mais sólida.


Por outro lado, é inegável que a sequência cumpre bem seu papel como entretenimento para fãs da franquia. Os animatrônicos continuam sendo o grande destaque, impressionantes em tela, assustadores na medida certa e responsáveis pelos momentos mais memoráveis do filme. A direção amplia o escopo visual, adiciona novos ambientes e cria um ritmo que, mesmo irregular, mantém o espectador engajado. O final, claramente pensado para preparar novos capítulos, reforça a sensação de que o universo FNAF está sendo construído com cautela e longe de estar perto da conclusão.

No balanço geral, Five Nights at Freddy’s 2 não revoluciona sua própria fórmula, mas aperfeiçoa aspectos técnicos e entrega exatamente o que quem gostou do primeiro espera: mais animatrônicos, mais mitologia, mais sustos leves e mais pistas para o futuro da franquia. Falta profundidade e ousadia, mas sobra fidelidade ao seu público. É um filme que diverte, mesmo sem surpreender, e que reforça o caminho comercial da série como um fenômeno de cultura pop antes de ser uma obra de horror verdadeiramente impactante.

30/11/2025

Crítica | Entre Nós – Uma Dose Extra de Amor

“Entre Nós – Uma Dose Extra de Amor” é uma comédia romântica que surpreende justamente por não tratar sua premissa ousada como um mero gatilho para piadas fáceis. Partindo de um ménage à trois impulsivo entre Connor, Olivia e Jenny, o filme poderia seguir pelo caminho óbvio da comédia escrachada, mas opta por algo mais raro no gênero: humanidade, maturidade e uma cuidadosa construção emocional. O resultado é um filme leve e divertido, mas também atento às fragilidades e contradições de seus personagens, sempre guiado por um elenco afinado que sustenta tanto o caos quanto a ternura da narrativa.

A situação inicial parece saída de uma comédia adolescente, mas rapidamente se transforma em algo mais complexo quando Olivia e Jenny descobrem que estão grávidas. A partir daí, o que poderia virar moralismo ou melodrama se abre para uma investigação sensível sobre responsabilidade, afeto e escolhas que ninguém estava preparado para enfrentar. Connor, interpretado com uma bela doçura tímida por Jonah Hauer-King, tenta desesperadamente fazer a coisa certa mesmo quando não sabe qual é essa coisa. Sua bondade é genuína, mas também limitada pela própria insegurança, e o filme não tenta inflá-lo como herói. Ele é apenas um jovem completamente perdido em uma situação que o ultrapassa, tentando manter o equilíbrio emocional de duas mulheres tão complexas quanto fascinantes.

Olivia, vivida com por Zoey Deutch, é a força mais atraente do filme. Impulsiva, contraditória, caótica e vulnerável, ela é o tipo de personagem que poderia se tornar insuportável em mãos menos talentosas. Deutch, porém, encontra um espaço delicado entre a comédia e o drama, revelando a fragilidade por trás das explosões emocionais e o desejo sincero de não ferir ninguém, mesmo quando faz exatamente isso. Sua atuação sustenta as mudanças bruscas de humor de Olivia, tornando cada recuo, cada surto e cada gesto de afeto algo humano e reconhecível. Ela é, no melhor sentido, uma personagem imperfeita que sobrevive na fronteira entre a auto sabotagem e a procura genuína por amor.

Jenny, por sua vez, ganha contornos mais discretos, mas fundamentais. Ruby Cruz entrega uma performance contida e sensível, contrapondo o furacão emocional de Olivia com uma calma que nunca é passividade. Jenny é moldada por sua fé, pela pressão de uma família religiosa e por uma autopercepção conflitante que a faz oscilar entre culpa e desejo. Seu arco é menos barulhento, porém mais íntimo, e sua tentativa de apresentar Connor como namorado para agradar a família não soa como um artifício cômico, mas como uma reação real de alguém tentando sobreviver a expectativas sufocantes. Cruz dá profundidade a uma personagem que poderia ter se tornado apenas o terceiro lado de um triângulo amoroso, transformando-a em alguém igualmente digno de afeto e compreensão.

A direção de Chad Hartigan navega entre humor, drama e toques de comédia. Essa mistura nem sempre é totalmente fluida, e o filme ocasionalmente perde o ritmo ao oscilar entre tons muito distintos. Há cenas que parecem pertencer a uma comédia independente moderna, outras que lembram sitcoms familiares e outras que flertam com o melodrama. Ainda assim, essa irregularidade acaba refletindo a própria jornada dos personagens, que oscilam constantemente entre o riso, o desespero e a tentativa constante de reorganizar suas vidas. A estética suave e terrosa e a cinematografia de Sing Howe Yam ajudam a manter a coesão, dando ao filme uma aparência calorosa que contrasta com os conflitos internos dos protagonistas.

O que realmente diferencia “Entre Nós – Uma Dose Extra de Amor” é a sua recusa em transformar a sexualidade dos personagens em piada ou punição. Embora o roteiro, em certos momentos, toque em temas que poderiam ser interpretados como moralizantes, ele não julga seus protagonistas. As consequências existem, mas não como castigo. São apenas consequências humanas, que exigem conversa, cuidado e coragem para enfrentar o que se deseja e o que se teme. O filme parece menos interessado em choques e mais preocupado em investigar como três jovens lidam com o impacto emocional de uma noite de aventura que se transforma em uma mudança profunda de vida.

No fim, o longa funciona porque acredita na capacidade de seus personagens de crescer. Não há vilões. Não há rivalidades artificiais. Não há disputas pelo amor de Connor que reduzam as mulheres à competição. Há, sim, três pessoas tentando encontrar espaço para suas necessidades e desejos em meio a circunstâncias inesperadas. Isso, somado a cenas verdadeiramente engraçadas, diálogos bons e momentos de ternura inesperada, faz de “Entre Nós – Uma Dose Extra de Amor” uma joia rara no gênero.

É uma comédia romântica que ri, sim, da confusão emocional, mas que também a trata com respeito. E ao final, quando percebemos que torcemos por todos, entendemos que o filme cumpriu sua promessa: mostrar que o amor, mesmo nas situações mais improváveis, ainda pode ser generoso, confuso, engraçado e profundamente humano.

27/11/2025

Crítica | Zootopia 2

Zootopia 2 confirma que o universo criado pela Disney em 2016 ainda tem fôlego, criatividade e inteligência para ir além do esperado. A sequência não apenas recupera o humor afiado, o visual deslumbrante e o carisma dos protagonistas, mas amplia e aprofunda a mitologia original, costurando uma aventura deslumbrante com temas sociais mais complexos do que o comum em animações voltadas ao grande público. O resultado é um filme que, diverte sem esforço, encanta pelo detalhamento visual e, surpreendentemente, provoca reflexões sobre desigualdade, urbanismo excludente e preconceitos estruturais dentro de sua cidade zoológica aparentemente utópica.

A trama parte de um ponto confortável: Judy Hopps e Nick Wilde estão oficialmente estabelecidos como parceiros na polícia, ainda que continuem opostos em temperamento. Ela continua sendo a força incansável da justiça e da boa vontade, enquanto ele cultiva o ceticismo esperto que o definiu desde o primeiro filme. Essa dinâmica floresce em conversas rápidas, divergências cômicas e momentos delicados. A química entre os dois sustenta o filme, funcionando como guia emocional da narrativa mesmo quando a ação se torna frenética.

O roteiro, porém, se recusa a permanecer no território simples da comédia policial. Um roubo aparentemente menor ou furto de um valioso livro histórico durante um baile de gala rapidamente se transforma em uma investigação que expõe falhas profundas na fundação da própria Zootopia. O que começa como perseguições caóticas pelas ruas e túneis aquáticos se converte em uma jornada sombria sobre exclusão territorial, segregação de espécies e o apagamento deliberado de comunidades inteiras, como répteis e mamíferos aquáticos, que foram deixados fora da cidade por decisões políticas antigas. A investigação conduzida por Judy e Nick passa a questionar não só quem cometeu um crime, mas quem tem direito a existir plenamente naquela sociedade.


A força visual do filme reforça essa expansão temática. Cada bioma introduzido por desertos abrasadores, montanhas geladas, corredores submersos é um convite a contemplar como o design de Zootopia é simultaneamente grandioso e problemático. Há uma beleza quase vertiginosa na maneira como a Disney anima texturas, luzes e multidões inteiras. Repetir a experiência certamente revelará dezenas de detalhes escondidos em cada plano. E, ao mesmo tempo, esse deslumbramento funciona como contraste para a crítica que o filme propõe: a cidade é espetacular, mas foi construída sobre exclusões históricas que a narrativa agora decide enfrentar. 

O elenco de apoio também eleva a experiência. Gary, a víbora atrapalhada e carismática que se torna peça-chave do mistério. Nibbles, a podcaster de teorias da conspiração cuja excentricidade cômica ajuda a mover o enredo. A entrega de charme e insegurança na pele do felino Pawbert, e o novo prefeito, um cavalo com um exagero icônico. O retorno de figuras queridas, como Mr. Big e a preguiça Flash, adiciona um toque de nostalgia sem atrapalhar o avanço da história. 

Embora a riqueza de ideias seja um ponto positivo, o filme às vezes se rende a sua própria ambição. Há tanto para mostrar, tantos ambientes a percorrer e tantos personagens a destacar que o ritmo por vezes parece apressado e a narrativa perde foco. A trama poderia ser mais enxuta, sem perder contundência ou emoção. Ainda assim, mesmo nos momentos mais carregados, há espaço para humor, afeto e uma crença honesta de que parcerias imperfeitas podem criar mudanças reais.


O mérito maior de “Zootopia 2” está em equilibrar espetáculo e reflexão. A sequência expande o mundo sem diluí-lo, investe em comentários sociais sem esquecer o público infantil e mantém intacto o coração da franquia: a ideia de que a convivência exige escolha consciente, empatia e uma disposição constante a revisar nossas certezas. Judy e Nick continuam sendo o espelho dessa utopia imperfeita, duas figuras tão diferentes que só funcionam juntas, justamente porque se desafiam e se complementam.

No fim, a mensagem brilha com a mesma força do trabalho de animação. “Répteis também são gente” ecoa como síntese de um filme que abraça a inclusão sem simplificá-la. E, se ainda há regiões e espécies a explorar, isso apenas confirma que o universo de Zootopia permanece vasto, promissor e cheio de histórias prontas para saltar da tela.

Crítica | Morra, Amor


“Morra, Amor” é um mergulho brutal na psique de uma mulher à beira da implosão, uma obra que confirma Lynne Ramsay como uma das poucas cineastas contemporâneas dispostas a encarar a escuridão feminina sem filtros, pudores ou discursos conciliadores. Adaptado do romance de Ariana Harwicz, o filme rejeita qualquer tentativa de diagnóstico direto e aposta radicalmente na experiência subjetiva e fragmentada de Grace, vivida por uma Jennifer Lawrence em seu trabalho mais cru e inquietante desde “O lado bom da vida”. Trata-se de um filme que não tenta explicar, justificar ou interpretar sua protagonista, mas sim expor o que há de mais irrepresentável em sua relação com a maternidade, com o corpo e com o horror silencioso da domesticidade. E justamente por não oferecer um caminho seguro para o espectador, “Morra, Amor” é tão perturbado.

Logo nas cenas iniciais, Ramsay deixa claro que não pretende tratar a depressão pós parto com o verniz de compreensão terapêutica que costuma dominar representações midiáticas da doença. A diretora rejeita a ideia de que o sofrimento psicológico feminino possa ser contado em termos pedagógicos ou clínicos e simplesmente desaba sobre o público a força bruta da experiência de Grace. Não existem explicações. Não existe contexto que justifique. O filme se instala no desconforto e na contradição. A abertura, em que Grace rasteja na grama com uma faca enquanto observa o próprio bebê ao longe, estabelece uma fronteira que poucos filmes ousam cruzar. A maternidade, aqui, não existe como uma narrativa de amor incondicional ou sacrifício sublime. Existe como um território de terror existencial, feito de impulsos, cansaço crônico, culpa e um desejo abissal de fuga.

Jennifer Lawrence abraça essa visão com uma entrega física e emocional que chega a ser desconcertante. A atriz sempre foi reconhecida por sua presença corpórea forte, mas em “Morra, Amor” essa fisicalidade é radicalizada até a decomposição. Lawrence é pura matéria instável. Seu corpo parece estar se desfazendo, misturando suor, terra, lágrimas, bebidas e sujeira numa performance que lembra Catherine Deneuve em “Repulsa ao amor”. A cada cena, a atriz caminha na fronteira entre lucidez e colapso, criando uma figura simultaneamente ameaçadora e vulnerável, cuja dor é tão intensa que se torna irrepresentável. Lawrence encontra nuances também nas explosões de humor ácido, elemento essencial para que o público compreenda que a devastação de Grace não é apenas sofrimento, mas também uma resistência raivosa contra a narrativa social que insiste em obrigá-la a amar cada instante da maternidade.


Ramsay reforça essa abordagem com uma construção estética que transforma o cotidiano rural de Grace e Jackson em um pesadelo alucinatório. A câmera de Seamus McGarvey registra a paisagem com um brilho noturno estranho, prateado e inquietante. A aparente tranquilidade da vida no campo é sistematicamente corroída pela iluminação, pela repetição sonora, pelas cenas em que objetos e espaços se tornam hostis. O lar, que deveria ser um espaço de cuidado, se transforma em cárcere e labirinto. A trilha sonora abusivamente presente, pulsante e caótica cria a sensação de que Grace está sempre à beira de um ataque. O filme se recusa a oferecer frescor ou descanso ao espectador. Tudo é saturado, opressivo, quebrado, refletindo uma protagonista que está prestes a estilhaçar qualquer pacto de convivência. 

Ainda assim, se “Morra, Amor” tem uma protagonista memorável, seu entorno nem sempre acompanha sua profundidade. Jackson, interpretado por Robert Pattinson, é concebido como uma figura quase caricatural de insensibilidade masculina, o que limita seu impacto dramático. A escolha de Ramsay parece deliberada. Jackson existe menos como personagem e mais como parte do sistema que colapsa sobre Grace. No entanto, a superficialidade da construção do casal provoca um efeito secundário indesejado. Em vários momentos, o filme parece menos interessado em investigar a maternidade contemporânea e mais comprometido em acumular episódios de choque, excentricidade e violência performática. Há cenas brilhantes, mas também momentos em que a estilização começa a competir com a densidade humana que o tema exige. 

O trabalho de Sissy Spacek como Pam, por outro lado, é um dos mais fortes elementos da narrativa paralela. Ao apresentar uma mulher mais velha igualmente à deriva, também envolvida em comportamentos noturnos enigmáticos e perigosos, o filme amplia sua discussão sobre mulheres quebradas que não encontram lugar dentro das normas sociais. Spacek é assombrosa, cria ressonâncias profundas com a trajetória de Grace e sugere que o ciclo de violência emocional e descontrole feminino atravessa gerações e formas de vida.


O problema central de “Morra, Amor” talvez esteja no fato de que Ramsay parece mais seduzida pelo espetáculo da desintegração do que pela introspecção da dor. O filme transborda energia visual, textura e intensidade, mas carece de articulação emocional em alguns trechos. Não porque seja frio, mas porque é tão obcecado pela representação do colapso que, por vezes, perde a oportunidade de explorar camadas que dariam profundidade ao desespero de Grace. Há um excesso de cenas estilizadas que se acumulam sem avançar o arco dramático. O resultado é que a doença mental da protagonista às vezes se transforma em um dispositivo estético mais do que em uma experiência humana compreensível. O espectador é convidado a testemunhar, mas não a penetrar verdadeiramente no que se passa dentro dela.

O último ato, marcado pela internação de Grace e pela tentativa fracassada de retorno à normalidade, expõe essa ambiguidade. O filme nos promete uma revelação e nos entrega uma repetição de sua própria lógica caótica. Grace retorna para casa fingindo alegria e docilidade, mas sabemos que tudo vai explodir. Quando a explosão finalmente ocorre, ela é cinematograficamente poderosa, porém emocionalmente previsível. Ramsay fecha o filme com imagens incandescentes, mas o efeito final é paradoxal. Ao mesmo tempo em que o espectador sente a força avassaladora da protagonista, também sente que faltou algo mais do que violência, fúria e colapso. Faltou talvez um olhar mais íntimo para o abismo que ela carrega.

“Morra, Amor” é um filme imperfeito, mas profundamente marcante. Ele testa os limites da representação da loucura feminina e da maternidade em crise. Possui uma intensidade rara, uma estética hipnotizante e uma performance marcante de Jennifer Lawrence, que se entrega ao papel com uma coragem quase suicida. É um filme que incomoda, irrita, fascina e esgota. Não oferece respostas e tampouco pretende oferecer. Sua força está justamente na recusa em domesticar o horror. Ao final, Ramsay cria uma obra que provoca mais perguntas do que conclusões e que reafirma o cinema como espaço para aquilo que não pode ser dito, apenas sentido.  

24/11/2025

Crítica | Bugonia


Bugonia marca mais um capítulo na trajetória de Yorgos Lanthimos como um dos cineastas contemporâneos mais provocadores, mas aqui ele opera em um registro surpreendentemente mais direto e acessível. O filme parte de uma premissa sombria e absurda: Teddy, um apicultor obcecado por teorias conspiratórias, acredita que a influente CEO Michelle Fuller é uma alienígena infiltrada na Terra com o objetivo de destruir a humanidade. A partir dessa convicção delirante, ele e seu primo Donny sequestram a executiva, dando início a um duelo psicológico que coloca em choque paranoia, corporativismo e desespero humano. A obra toma forma como uma comédia bem ácida carregada de fúria, mas também profundamente interessada na maneira como o mundo contemporâneo produz tanto monstros quanto vítimas. É nesse terreno nebuloso que Lanthimos exercita sua habilidade de provocar moralmente o espectador, ao mesmo tempo que constrói um filme visualmente controlado e narrativamente corrosivo.

Desde o início, Bugonia impressiona pela energia bruta com que Lanthimos contrapõe os universos de seus personagens. O cotidiano disciplinado de Michelle, mostrado em ambientes limpos e gelados, contrasta com a casa decadente de Teddy, onde a atmosfera é claustrofóbica e impregnada de delírio. Quando os dois mundos colidem no violento sequestro da executiva, o filme encontra sua verdadeira forma. O porão onde Michelle é aprisionada torna-se palco de um embate que tanto bebe de narrativas de cativeiro quanto de sátiras políticas recentes. A opção visual do diretor de filmar Teddy de baixo para cima e Michelle de cima para baixo cria uma inversão instigante do olhar. O enquadramento remete às representações clássicas de vítimas de martírio, mas aplica essa linguagem a uma personagem que representa o poder corporativo predatório. A imagem resulta em um desconforto calculado que acompanha todo o filme e reflete a ambiguidade moral que Lanthimos insiste em preservar.

A dinâmica entre Michelle e Teddy é sustentada pelas atuações excepcionais de Emma Stone e Jesse Plemons. Stone brilha ao interpretar uma executiva fria que esconde sua crueldade sob camadas de linguagem corporativa e um verniz hipócrita de empatia. Seu comportamento no cativeiro, alternando desespero, manipulação e cinismo, revela um domínio perfeito do subtexto emocional do filme. Já Plemons entrega uma performance irresistivelmente perturbadora. Seu Teddy é um homem destruído, consumido pela dor, pela ideologia e pela própria incapacidade de lidar com o mundo. Ele parece se mover por uma raiva antiga que tanto o empurra quanto o deteriora. Essa complexidade transforma o personagem em uma figura simultaneamente repulsiva e trágica. Lanthimos usa essa dualidade para encenar um confronto que não permite respostas fáceis sobre quem, afinal, merece nossa compaixão.


O humor ácido do filme nasce justamente do modo como esses personagens verbalizam suas crenças e seus temores. Os diálogos são carregados de ironia e exibem um casamento eficiente entre o texto de Will Tracy e a direção precisa de Lanthimos. Em diversos momentos, Bugonia parece uma peça teatral reduzida ao essencial, focada apenas em observar dois indivíduos que refletem facetas distintas de um mundo polarizado e esgotado. É notável como o filme brinca com nossa empatia. Primeiro, provoca desprezo por Michelle, representante de uma corporação responsável por danos ambientais e humanos. Depois, encena a paranoia de Teddy com intensidade suficiente para quase nos fazer entender sua lógica distorcida. Em seguida, revela a vulnerabilidade e a dor de ambos, desestruturando qualquer julgamento simplista. Essa oscilação é um dos elementos mais fortes da narrativa e também um dos mais desconfortáveis.

O visual de Bugonia contribui decisivamente para esse desconforto. Lanthimos, mais contido do que o habitual, evita grandiosidade estética e opta por criar ambientes que reforçam a tensão emocional. O porão é fotografado com luzes que parecem engolir a personagem de Stone, enquanto a casa de Michelle surge como um monumento à estética fria do capitalismo moderno. A trilha sonora estrondosa reforça a sensação de ameaça constante. Jerskin Fendrix compõe temas que ora amplificam o terror psicológico, ora escancaram o absurdo da situação. Há uma brutalidade sensorial no filme que dialoga com a raiva que o permeia e que orienta a experiência do espectador.

Apesar disso, é inevitável notar que o roteiro às vezes hesita entre a sátira política, o thriller psicológico e a pressão social. Essa indecisão estilística, embora estimulante, também dilui a força de certas ideias. O filme constrói metáforas sobre ganância corporativa, colapso ecológico, desinformação e ressentimento social, mas hesita em transformá-las em uma crítica completamente afiada. A ambiguidade moral constante é fascinante como dispositivo narrativo, mas cria um distanciamento emocional que pode enfraquecer o impacto final. Ainda assim, essa escolha parece consciente. Lanthimos não oferece respostas porque quer que o próprio público confronte o que há de desumano tanto na paranoia de Teddy quanto na frieza de Michelle.


O último ato de Bugonia é o ponto mais arriscado da obra. A narrativa assume contornos trágicos e cósmicos, expondo em escala maior as consequências das obsessões humanas. O encerramento, violento e surpreendente, reconfigura tudo aquilo que vinha sendo construído e lança uma nova luz sobre a relação entre os personagens. É um gesto ousado, que pode dividir opiniões, mas reafirma a disposição do diretor de levar suas ideias até o limite. O final sugere que a destruição talvez seja inevitável quando a humanidade insiste em cultivar tanto egoísmo, tanto negacionismo e tanta ganância. Esse pessimismo é o cerne de Bugonia, uma obra que desafia o público a reconhecer nos personagens os reflexos mais distorcidos e sinceros do mundo atual.

Bugonia é, portanto, um filme inquieto, afiado e repleto de provocações. Não alcança a plenitude criativa de obras anteriores de Lanthimos, mas compensa com intensidade, ousadia e interpretações impecáveis. É uma sátira amarga, uma tragédia íntima e um comentário incômodo sobre o colapso ético que permeia nossa sociedade. Ao final, resta ao espectador a tarefa de decidir quem são os verdadeiros monstros: os que governam com frieza e manipulação ou aqueles que, tomados pelo desespero e pela raiva, acreditam que a violência pode salvar o mundo. Talvez, como sugere o filme, a resposta seja ainda mais perturbadora. Talvez o verdadeiro monstro seja a humanidade inteira.

20/11/2025

Crítica | Wicked: Parte II


Wicked: Parte II é… aquela estreia que eu esperei demais e que, por isso mesmo, acabou me lembrando por que expectativa alta nem sempre é amiga do coração.

Nunca fui grande fã de musicais, mas Wicked 1 virou minha chave. Três horas que passaram voando: produção impecável, músicas que grudavam e personagens tão bem construídos que a jornada de Glinda e Elphaba encanta a gente. Quando terminou, ficou aquela sensação de “quero mais” e a promessa de uma continuação que só aumentou a ansiedade.

Pois bem: depois de um bom tempo de espera, Wicked 2 finalmente chegou… e junto veio o peso do próprio passado. Porque, sim, ele carrega o fardo do primeiro filme. E isso dá pra sentir o tempo todo.

Antes de tudo: o design de produção continua perfeito. Visualmente, é um deslumbre. Glinda e Elphaba continuam sendo o grande brilho da história — Cynthia Erivo e Ariana Grande têm uma química absurda, funcionam demais juntas e realmente seguram o filme sempre que estão em tela.


Mas aí vem a parte amarga.

As músicas são legais, mas nenhuma chega perto de marcar. Elas cumprem função narrativa, mas não conquistam. Você assiste, entende, mas não sai cantarolando, não pesa, não arrepia. Nada aqui chega perto de um “Defying Gravity”. Falta aquele momento que te puxa pela alma.

E, pra mim, o ponto que realmente faz Wicked 2 perder densidade é a correria. É curioso: o primeiro filme tinha cortes rápidos, montagem ágil, mas a história era contada com calma tudo respirava, tudo tinha peso. Já o segundo faz o contrário: a montagem é lenta, mas a história é acelerada. Isso joga contra o próprio roteiro.

Em 2h20, o filme parece ter pressa onde deveria ter pausa. Personagens aparecem sem tempo de apresentação. A linha do tempo fica confusa. Coisas importantes acontecem sem impacto emocional. E novos elementos entram e saem antes mesmo de você entender quem são ou o que representam.

O resultado? Wicked 2 vira um filme de nicho, feito para quem já conhece Oz, já ama musicais, já sabe onde cada peça se encaixa. Ele perde justamente o charme do primeiro: ser uma porta de entrada acessível e encantadora pra quem nunca tinha pisado nesse universo.

No fim, Wicked 2 é um filme para fãs.

Visualmente lindo, com duas protagonistas que carregam tudo nas costas, mas com um ritmo atropelado e músicas que não chegam a brilhar.

Saí da sala com aquela sensação agridoce: feliz por revisitar esse mundo… mas com a certeza de que faltou espaço para a história respirar como merecia.


17/11/2025

CRÍTICA | O SOBREVIVENTE

O sobrevivente, dirigido por Edgar Wright, é uma nova leitura de um velho pesadelo distópico: a luta do indivíduo contra um sistema que transforma a violência em entretenimento. Baseado no romance homônimo escrito por Stephen King sob o pseudônimo Richard Bachman, e também herdeiro do filme de 1987 estrelado por Arnold Schwarzenegger, o longa de 2025 tenta equilibrar as duas heranças, o drama sombrio e pessimista do livro e a energia pesada e satírica do cinema de ação dos anos 80. O resultado é um híbrido ambicioso, visualmente deslumbrante, cheio de estilo e ritmo, mas que por vezes parece dividido entre ser um espetáculo de ação ou uma crítica social contundente.

Edgar Wright imprime sua assinatura logo nos primeiros minutos, com uma sequência de abertura de ritmo acelerado e montagem precisa, que comunica a degradação do mundo retratado sem precisar de uma única linha de diálogo. Glen Powell interpreta Ben Richards, um trabalhador comum preso em uma sociedade dominada por corporações totalitárias, onde o emprego é privilégio e a saúde é mercadoria. Desesperado para comprar remédios para sua filha doente, ele aceita participar de um reality show mortal chamado “O Sobrevivente”, em que competidores são caçados por assassinos profissionais diante de milhões de espectadores. Se resistir por trinta dias, ganha um bilhão de dólares, um prêmio que, em um mundo em colapso, representa a salvação.

A premissa, ainda que familiar, ganha fôlego pela forma como Wright conduz o espetáculo. O diretor mantém seu virtuosismo técnico, utilizando câmeras ágeis, trilha sonora complexa e uma estética punk e colorida que contrasta com o cinismo da narrativa. O filme brinca com o visual de um futuro sujo e decadente, ao mesmo tempo em que traz um design retrô, cheio de detalhes que evocam um senso de nostalgia deslocada. Há um cuidado visível em cada enquadramento, especialmente nas sequências de perseguição, que demonstram a maestria de Wright no controle da tensão e da fluidez. No entanto, o ritmo frenético nem sempre permite que a história respire ou que seus personagens se desenvolvam plenamente.

Ben Richards, interpretado com maestria por Glen Powell, é o coração do filme, mas também seu maior enigma. Powell entrega uma performance física muito convincente, misturando vulnerabilidade e fúria, embora falte à construção do personagem uma dimensão emocional mais profunda. Sua raiva parece constante e justificada, mas raramente evolui. Ainda assim, ele é carismático o suficiente para sustentar a jornada de um homem comum transformado em símbolo de resistência. Ao seu redor, há um elenco de apoio de peso. Colman Domingo brilha como Bobby T., o apresentador do programa, um mestre de cerimônias carismático e cruel que encarna a mistura de espetáculo e perversidade da cultura televisiva. Sua performance extravagante e irônica é um dos pontos altos do filme, trazendo humor e desconforto em medidas iguais. Josh Brolin, por sua vez, interpreta Dan Killian, o produtor do programa, com uma frieza calculada, mas sua vilania carece de um arco dramático mais convincente.

Um dos aspectos mais fascinantes do longa é a forma como ele atualiza a crítica social do material original. No mundo de Wright, a manipulação da informação atingiu níveis que Stephen King, em 1982, talvez não pudesse prever. O filme incorpora o uso de inteligência artificial, deepfakes e desinformação para explorar o controle das massas e a fabricação da verdade. Essa abordagem torna “O Sobrevivente” assustadoramente contemporâneo, mas também o aproxima demais da realidade, o que enfraquece sua força como sátira. Diferente do tom grotesco e exagerado de “Robocop” ou “Tropas Estelares”, aqui a distopia é plausível demais, o que transforma o riso em desconforto.

A ambição temática de Wright é evidente, mas é justamente nela que o filme tropeça. “O Sobrevivente” tenta ser, ao mesmo tempo, um thriller de ação de tirar o fôlego, uma sátira social mordaz e uma reflexão filosófica sobre a manipulação da verdade. Ele faz cada uma dessas coisas de maneira competente, mas raramente de forma excepcional. A ação, embora estilizada, carece do impacto memorável que Wright alcançou em “Baby Driver”. As cenas de luta e perseguição são incríveis, mas nem sempre inventivas, e há momentos em que a coreografia parece subordinada ao espetáculo visual. Por outro lado, a crítica política é clara, mas um tanto previsível. O filme denuncia o capitalismo predatório, o sensacionalismo midiático e a alienação coletiva, mas o faz de modo direto demais, sem a sutileza que tornaria sua mensagem mais duradoura.

Apesar dessas falhas, o longa tem méritos notáveis. Wright ainda é um mestre da montagem e da trilha sonora, e o filme pulsa com o mesmo senso de ritmo e sincronia que caracteriza suas obras anteriores. A edição de Paul Machliss é precisa, criando sequências de ação que lembram videoclipes, mas que nunca perdem o controle narrativo. A trilha sonora, com clássicos pop e rock, estabelece uma ironia eficaz ao contrastar melodias animadas com a brutalidade dos eventos na tela. O design de produção é outro destaque, construindo um mundo que parece simultaneamente futurista e retrô, com outdoors luminosos, tecnologia decadente e figurinos que misturam o glamour dos palcos com o desespero das ruas.

Há também momentos em que a sensibilidade autoral de Wright emerge com força. Pequenas cenas de humor ácido, olhares cínicos sobre o comportamento do público e a inserção de detalhes visuais quase subliminares, como propagandas grotescas e manchetes absurdas, evocam um espírito satírico. O problema é que, “O Sobrevivente” permanece na superfície, mais interessado em entreter do que em perturbar.

No fim, o filme deixa uma impressão ambígua. É ao mesmo tempo uma experiência empolgante e uma oportunidade perdida. Edgar Wright entrega um espetáculo tecnicamente impecável, repleto de estilo e energia, mas que parece hesitar diante da própria ousadia. Faltou a coragem de escolher entre o sarcasmo mordaz e o pessimismo existencial do material original. Ainda assim, “O Sobrevivente” é um filme que vale a pena ser visto, especialmente pela maneira como reflete, ainda que de forma imperfeita, a ansiedade de um mundo em que a verdade é maleável e a violência se tornou entretenimento.

Ao apagar das luzes, o que fica é uma sensação paradoxal. O público se diverte com o ritmo frenético, ri das piadas ácidas e se encanta com o espetáculo, mas sai do cinema com a impressão de que algo essencial ficou de fora. É como se o próprio filme tivesse sido capturado pela lógica que critica, um produto visualmente deslumbrante, feito para entreter as massas, mas que, no fundo, não consegue escapar das engrenagens da sociedade que satiriza. Ainda assim, por sua ambição, estilo e relevância, “O Sobrevivente” de Edgar Wright reafirma o talento de um diretor que continua a encontrar beleza, humor e energia até mesmo nas distopias mais sombrias.

12/11/2025

Crítica | Truque de Mestre: O 3º Ato


Truque de Mestre: O 3º Ato, chega aos cinemas como uma continuação que respeita o legado da franquia e reafirma o fascínio do público por narrativas que misturam ilusionismo, um belo espetáculo visual e muita crítica social. Dirigido por Ruben Fleischer, conhecido pelo senso de humor e seu ritmo acelerado, o novo capítulo dos Quatro Cavaleiros aposta em um enredo que combina nostalgia e renovação, equilibrando o retorno do elenco original com a introdução de uma nova geração de mágicos. O resultado é um filme bonito, visualmente exuberante e repleto de reviravoltas que, embora previsíveis em alguns momentos, mantêm o público encantado até o último truque. 

A trama se inicia após a separação do grupo original. Daniel Atlas, interpretado novamente por Jesse Eisenberg, tenta reconstruir sua carreira e seu propósito ao liderar um trio de jovens ilusionistas interpretados por Justice Smith, Ariana Greenblatt e Dominic Sessa. Sua missão é audaciosa: roubar um diamante de valor inestimável enquanto enfrenta a poderosa vilã Veronika Vanderberg, vivida lindamente por Rosamund Pike, cuja presença marcante adiciona um novo tipo de antagonismo à franquia. A jornada de Atlas acaba forçando uma inevitável reunião com seus antigos companheiros Merritt McKinney (Woody Harrelson), Jack Wilder (Dave Franco) e Henley Reeves (Isla Fisher, que retorna ao papel após sua ausência no segundo filme), resultando em um reencontro cheio de tensão, humor e cumplicidade.

O grande trunfo do longa está na forma como Fleischer consegue equilibrar o espetáculo da mágica com a inteligência narrativa. As cenas de ilusão, embora fortemente apoiadas em efeitos digitais, conservam o mesmo senso de encantamento dos filmes anteriores. Há um domínio técnico notável no uso da computação gráfica, que permite criar sequências visualmente hipnóticas, sem abandonar completamente o charme dos truques físicos e da manipulação manual. É um cinema que brinca com o olhar, desafiando o espectador a distinguir o que é real e o que é ilusão, exatamente como deve ser em um filme sobre mágicos que enganam para revelar verdades.


O roteiro, assinado por Michael Lesslie, Rhett Reese e Seth Grahame-Smith, aposta em um ritmo dinâmico, alternando entre momentos de humor leve e passagens de pura tensão. Os diálogos são afiados, e a trama, embora cheia de conveniências típicas de Hollywood, mantém uma coerência interna admirável. O enredo funciona como uma metáfora sobre a própria arte do entretenimento: cada ato é uma performance cuidadosamente calculada, e o público, mesmo sabendo que está sendo enganado, continua aplaudindo. Essa camada metalinguística reforça o charme da franquia, que sempre tratou o espetáculo como um ato de rebeldia contra o poder e a ganância.

O elenco, mais uma vez, demonstra entrosamento e carisma. Jesse Eisenberg reprisa seu papel com a mesma energia, enquanto Woody Harrelson continua a ser o alívio cômico essencial que equilibra a seriedade do grupo. Isla Fisher brilha ao retomar o papel de Henley, conferindo à personagem um misto de elegância e audácia que havia feito falta no segundo filme. Dave Franco mantém sua leveza natural, enquanto Morgan Freeman, como Thaddeus Bradley, surge como a ponte entre o passado e o presente da história. Rosamund Pike, por sua vez, é uma adição inspirada, sua vilã é sofisticada, perigosa e absolutamente hipnotizante, conferindo ao longa uma densidade dramática que o diferencia dos anteriores.

Visualmente, “O 3º Ato” é um deleite. A direção de arte aposta em cenários deslumbrantes que evocam tanto o glamour dos palcos quanto a atmosfera conspiratória das histórias de espionagem. Há referências explícitas a obras de arte e ilusões clássicas, como as escadarias de Escher, que reforçam o caráter lúdico do filme. Fleischer filma com fluidez, utilizando movimentos de câmera que simulam a sensação de um truque sendo executado diante de nossos olhos. Cada sequência é construída como uma mágica em três etapas: preparação, confusão e revelação. E quando a última chega, o espectador sente o prazer de ter sido enganado com estilo.


O filme também mantém viva a essência que tornou a franquia tão popular, a ideia de justiça poética travestida de espetáculo. Os Cavaleiros continuam a usar a mágica como instrumento de subversão, desafiando elites corruptas e desmascarando o poder por meio da ilusão. Essa combinação de entretenimento e crítica social é o que dá relevância à série em meio ao mar de produções de ação genéricas. Ainda que “O 3º Ato” suavize algumas de suas tensões políticas em prol de um tom mais leve e familiar, a crítica à manipulação e à desigualdade permanece como pano de fundo.

O desfecho do filme entrega o que promete: um clímax repleto de surpresas e reviravoltas que brincam com as expectativas do público. O “plot twist” final, sem entrar em spoilers, é digno da reputação da franquia e garante aquele momento de espanto que faz o público sair da sala comentando o que acabou de ver. Há, ainda, uma evidente abertura para uma nova continuação, sugerida pela reaparição do lendário Olho, símbolo maior da organização que guia os Cavaleiros desde o início.

06/11/2025

Crítica | Grand Prix: A Toda Velocidade


Grand Prix: A toda velocidade, é uma animação bem familiar que acelera com muito entusiasmo, mas raramente alcança a linha de chegada com originalidade ou profundidade emocional. Produzido em comemoração ao 50º aniversário do parque temático alemão Europa-Park, o filme é tanto um produto de marketing quanto uma tentativa legítima de entretenimento infantil. E embora possua um elenco vocal de peso e algumas ideias encantadoras, o resultado é uma mistura previsível de clichês, personagens simpáticos e uma narrativa que segue o piloto automático.

A história gira em torno de Edda, uma ratinha sonhadora que trabalha com o pai em um parque temático decadente. Enquanto o pai tenta manter o negócio de pé, ela sonha em se tornar uma grande piloto, inspirada em seu ídolo Ed, um astro arrogante e vaidoso das corridas, dublado por Thomas Brodie-Sangster. Gemma Arterton empresta sua voz a Edda, conferindo à personagem um tom inocente, mas também muito teimosa que combina bem com sua ambição juvenil. Quando Edda decide fugir para Paris para assistir ao seu herói competir, sua jornada se transforma em uma aventura de autodescoberta, marcada por acidentes, disfarces e uma improvável ascensão ao mundo das corridas. 

O enredo é eficiente em sua simplicidade, algo raro em animações recentes que frequentemente se complicam com subtramas excessivas. Depois de um acidente causado por Edda, Ed fica ferido e, em um arranjo pouco convincente, ela acaba assumindo o lugar dele nas competições. A partir daí, a história segue o caminho previsível de superação e amizade, temperado por um mistério leve sobre sabotagens nas pistas. A trama de detetive é rasa, mas cumpre seu papel de manter as crianças atentas, com suspeitos caricatos como um corvo de ar ameaçador e um urso suíço sorridente que pronuncia “muffins” como “mooofins”.


O maior mérito de “Grand Prix: A toda velocidade” está em seu elenco de vozes. Thomas Brodie-Sangster diverte ao interpretar Ed, equilibrando arrogância e carisma em uma performance que ironiza os estereótipos de atletas celebridades. Gemma Arterton traz doçura e determinação à protagonista, enquanto Lenny Henry, na voz do pai de Edda, confere calor e humanidade ao filme. Colin McFarlane, como o corvo Nachtkraab, é uma presença enigmática e necessária, adicionando um leve toque de suspense. Já Hayley Atwell dá um tom espirituoso à personagem Cindy, cuja presença garante momentos de humor. O destaque, porém, é Böckli, o urso dublado por DJ Bobo, um coadjuvante adorável e leal que acaba se tornando o verdadeiro coração da narrativa.

Visualmente, o filme apresenta altos e baixos. Os cenários são exuberantes e bem renderizados, capturando com beleza pontos icônicos da Europa, como a Torre Eiffel, o Big Ben e os Alpes suíços. As paisagens são cheias de cor e energia, mas a animação dos personagens, por outro lado, carece de expressividade. As feições rígidas e os movimentos limitados contrastam com o vigor das vozes, enfraquecendo o impacto emocional de certas cenas. Há momentos em que o público sente mais o talento do elenco do que a emoção transmitida pelas imagens. 

Narrativamente, o longa carece de imaginação. A trama repete estruturas familiares a qualquer fã de animação infantil: a protagonista que sonha alto, o mentor arrogante que aprende humildade, a competição que termina em lições de amizade. Tudo é previsível, ainda que contado com simpatia e bom humor. Há ecos de “Carros”, da Pixar, e de “Turbo”, da DreamWorks, mas sem a mesma inventividade ou refinamento técnico. A sensação é de que “Grand Prix: A toda velocidade” se contenta em ser agradável, sem arriscar nada realmente novo.


Ainda assim, o filme tem momentos encantadores. A relação entre Edda e seu pai é tocante, especialmente pela forma como o amor familiar se manifesta em gestos simples e pela mensagem de apoio incondicional aos sonhos. Mesmo com a previsibilidade do roteiro, há sinceridade na forma como o filme fala sobre coragem e perseverança. As crianças certamente se identificarão com a protagonista determinada e encontrarão diversão nas corridas e nas trapalhadas dos personagens secundários.

O problema é que falta alma. Os ratos de “Grand Prix: A toda velocidade” parecem mais mascotes de parque do que personagens com vida própria. Diferente de clássicos como “Os Aventureiros do Bairro Proibido” ou “Fievel: Um Conto Americano”, que transformam pequenos roedores em espelhos das emoções humanas, aqui os protagonistas são veículos para mensagens genéricas. O resultado é um produto polido, mas sem o calor ou a originalidade que tornaram outros filmes do gênero memoráveis.  

Grand Prix: A toda velocidade é uma animação charmosa, porém esquecível. Cumpre seu papel como entretenimento leve e visualmente atraente, ideal para crianças pequenas e para famílias em busca de diversão sem grandes exigências. Não reinventa nada, mas também não ofende. Seu maior combustível está no elenco talentoso (e na dublagem brasileira, sempre muito bem alinhada ao original) e na vibração otimista que atravessa cada cena. É um passeio previsível, mas conduzido com o suficiente de energia e simpatia para não sair da pista

Crítica | Predador: terras selvagens

Predador: terras selvagens, representa uma ousada reinterpretação da franquia clássica de ação e ficção científica, conduzida por Dan Trachtenberg, que mais uma vez prova compreender o potencial simbólico e cinematográfico de seus caçadores intergalácticos. Longe da brutalidade crua e do suspense militarista que definiram o filme original de 1987, esta nova entrada desloca o olhar para o interior da cultura Yautja, transformando o predador em protagonista e humanizando o monstro. O resultado é uma obra visualmente deslumbrante, conceitualmente ambiciosa e emocionalmente surpreendente, ainda que suavizada por um tom mais leve e acessível.

A história se passa no planeta Genna, conhecido como o “planeta da morte”, um ambiente inóspito onde cada forma de vida parece ter evoluído para devorar outra. É nesse cenário que Dek, um jovem predador considerado fraco e indigno por seu próprio clã, busca provar seu valor. Rejeitado por seu pai e enviado em uma missão suicida para caçar a lendária criatura Kalisk, Dek encarna o arquétipo do herói relutante que, ao longo da jornada, se confronta não apenas com inimigos externos, mas com as próprias crenças que moldaram sua identidade. É nesse ponto que “Terras Selvagens” se distingue das produções anteriores da franquia, substituindo o ciclo de caça e vingança por uma história de amadurecimento e autodescoberta.

Logo após chegar a Genna, Dek encontra Thia, uma androide da corporação Weyland-Yutani, sobrevivente de uma expedição fracassada. Ela é interpretada por Elle Fanning em uma performance extraordinária que combina doçura e tragédia, alternando entre ingenuidade infantil e uma inteligência profunda, quase filosófica. Desmembrada e reduzida à metade superior do corpo, Thia se arrasta como uma ginasta em barras paralelas, mas nunca perde o brilho nos olhos nem a curiosidade pela vida. A parceria improvável entre ela e Dek, uma máquina que busca humanidade e um guerreiro que precisa aprender empatia, se torna o eixo emocional do filme.

A relação entre os dois é o coração pulsante de “Predador: terras selvagens”. Inicialmente marcada pela desconfiança, ela evolui para uma cumplicidade quase espiritual. Dek carrega Thia como uma mochila viva, irritado com seu falatório incessante e suas perguntas sobre a anatomia Yautja, mas aos poucos passa a depender de sua sabedoria e sensibilidade. Thia, por sua vez, vê em Dek um ser capaz de aprender o valor da cooperação, algo que os predadores sempre desprezaram. O filme, então, torna-se menos uma história de caça e mais uma parábola sobre a sobrevivência coletiva, ecoando a lição de que a verdadeira força não está na solidão, mas na capacidade de proteger e compreender o outro.

Trachtenberg combina referências do cinema de aventura dos anos 1980 com uma estética contemplativa inspirada em Terrence Malick. As paisagens alienígenas de Genna são exuberantes e mortais, filmadas com uma beleza hipnótica que transforma a natureza em um personagem vivo. As criaturas são de um design impecável, há insetos translúcidos que explodem em chamas, anfíbios gigantes que se camuflam na vegetação, e plantas carnívoras que atacam como serpentes. Tudo respira coerência biológica e visual, um testemunho do cuidado na construção desse ecossistema hostil. Cada sequência de ação é desenhada com clareza e propósito, evitando o caos visual de blockbusters recentes. 

Ainda que o filme mantenha o DNA de “Predador”, a violência foi domesticada. Trachtenberg adota uma classificação para 16 anos, trocando o gore característico por uma intensidade mais psicológica. O sangue verde e o fluido sintético substituem o horror explícito, sem que o senso de perigo se perca completamente. Há cenas de combate engenhosas, especialmente quando Dek é forçado a improvisar armas com os elementos do ambiente, lembrando o engenho de “O Regresso” e “Prey”. Porém, o foco nunca é o espetáculo da morte, e sim o processo de aprendizado que transforma a caça em coexistência.


O filme também dialoga com o universo de “Alien”, unindo as franquias sob a sombra da Weyland-Yutani. Thia e sua “irmã” Tessa, também interpretada por Fanning, representam as duas faces da inteligência artificial: uma programada para obedecer, outra capaz de sentir. Quando Tessa ressurge, fria e fiel à corporação que a criou, o confronto entre as duas sintetiza o dilema central de “Terras Selvagens”, o embate entre programação e livre-arbítrio, entre instinto e compaixão. É nesse momento que o filme revela sua alma mais reflexiva, ao mostrar que tanto androides quanto predadores estão presos a códigos que precisam ser transcendidos para se tornarem verdadeiramente vivos.

Dek, por sua vez, descobre que os valores de sua espécie, honra, força e domínio são máscaras para o medo da vulnerabilidade. A presença de Thia o obriga a reconsiderar o que significa ser guerreiro. Quando ela lhe diz que “sobreviver sozinho não é viver”, a frase ecoa como um mantra que redefine não apenas o personagem, mas a própria mitologia da franquia. Pela primeira vez, um predador aprende a proteger, não a destruir. Essa inversão de papéis dá ao filme um tom quase poético, um estudo sobre empatia em meio à selvageria. 

Há, é claro, concessões ao público mais jovem e ao estilo Disney de aventura, resultado direto da aquisição da Fox pelo estúdio. A presença do pequeno Bud, uma criatura híbrida entre macaco e tatu, serve como alívio cômico e símbolo de ternura, evocando inevitavelmente o fenômeno Baby Yoda. Apesar do risco de se tornar mero artifício comercial, o personagem funciona como espelho da inocência que Thia desperta em Dek, reforçando o tema da conexão entre espécies. Ainda assim, a leveza e o humor nunca anulam completamente o peso simbólico do filme, que segue tratando de dilemas morais e existenciais com surpreendente maturidade.


“Predador: terras selvagens” é, acima de tudo, uma reinvenção corajosa. Dan Trachtenberg compreende que, para manter uma franquia viva, é preciso libertá-la das amarras do passado. Ao transformar o caçador em aprendiz, o monstro em protagonista e o horror em introspecção, ele devolve à saga uma vitalidade que há muito se perdera. É um filme sobre romper ciclos de violência, de obediência e de isolamento e sobre descobrir que até os seres mais temidos do universo podem evoluir.  

Pode não ser o “Predador” mais sangrento, mas é certamente o mais humano. Em meio a batalhas, criaturas e paisagens alienígenas, “Terras Selvagens” encontra algo raro no cinema de ficção científica contemporâneo, uma alma.

28/10/2025

Crítica | SPRINGSTEEN: SALVE ME DO DESCONHECIDO


“Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é uma cinebiografia que se afasta do molde tradicional dos filmes sobre músicos, recusando o espetáculo e a grandiosidade que normalmente acompanham o gênero. Dirigido por Scott Cooper, o longa se propõe a explorar não o mito de Bruce Springsteen, mas o homem por trás das canções, num período em que o sucesso o havia deixado à beira do esgotamento emocional e criativo. O resultado é um retrato melancólico, íntimo e por vezes dolorosamente lento, que se debruça sobre o processo artístico e o peso psicológico de ser um gênio que, no auge da fama, se vê à deriva.

A trama, ambientada no início dos anos 1980, acompanha o cantor logo após o estouro de “Hungry Heart” e a turnê triunfante do álbum “The River”. Jeremy Allen White encarna Springsteen em uma interpretação surpreendentemente contida, distante do carisma expansivo que se espera do astro. Seu Bruce é um homem introspectivo, consumido por dúvidas, mergulhado em leituras densas de Flannery O’Connor e em longas viagens noturnas pelas estradas de Nova Jersey. Ele aluga uma casa isolada em Colts Neck e tenta encontrar nas sombras e no silêncio a matéria-prima para um novo som, o que viria a ser o álbum “Nebraska”, um dos mais sombrios e minimalistas de sua carreira.

O filme começa tropeçando em clichês. A infância difícil, o pai violento, as brigas familiares e as inevitáveis cenas em preto e branco parecem seguir o manual do gênero biográfico musical. Há, inclusive, momentos em que o tom beira o didático, como se Cooper e Pamela Martin tentassem traduzir para o público a alma atormentada do artista de forma literal demais. Os flashbacks insistem em lembrar que o menino assustado de Freehold ainda vive dentro do homem, mas essa obviedade dilui parte da força emocional. Ainda assim, a narrativa encontra seu tom à medida que abandona os vícios da mitificação e passa a se concentrar na fragilidade mental e na solidão do personagem. 


A virada ocorre quando o foco deixa de ser o “nascimento de um gênio” e passa a ser o processo humano de criação. Ao tentar reproduzir suas demos caseiras no estúdio, Bruce se depara com a impossibilidade de traduzir em alta fidelidade o que apenas a precariedade do gravador TEAC 144 conseguiu capturar: o som cru, imperfeito, mas autêntico de uma alma em crise. Nesse ponto, o filme se transforma num estudo sobre a tensão entre arte e indústria, entre a pureza da expressão individual e as exigências comerciais que ameaçam corrompê-la. É aqui que Jeremy Strong, como Jon Landau, surge com uma atuação de grande sensibilidade. O empresário produtor de Springsteen é mostrado não como um manipulador ou explorador, mas como um confidente, alguém que compreende a dor do artista e tenta ampará-lo sem sufocar sua liberdade criativa.

A relação entre Bruce e Landau é o coração emocional do filme. Strong transmite, com um olhar sereno e um sorriso contido, o afeto de quem enxerga no amigo não um produto, mas uma pessoa em frangalhos. Essa humanidade sutil contrasta com o romance entre Springsteen e Faye, interpretada por Odessa Young, uma mãe solteira que o ajuda a relembrar o mundo fora das canções. Embora o relacionamento sirva de válvula emocional, Cooper evita transformá-lo em um melodrama. O que move a narrativa não é o amor romântico, mas a lenta reconciliação de Springsteen com sua própria vulnerabilidade. 

A direção de Cooper se mostra mais madura do que em seus trabalhos anteriores, como “Coração Louco”. Se lá a música era usada para elevar o drama, aqui ela é o drama. As canções de “Nebraska” não surgem como ilustrações, mas como extensões diretas do estado mental do protagonista. Em certos momentos, o uso da trilha é quase transcendental, especialmente nas cenas em que o rosto de White é iluminado apenas pelas sombras da noite enquanto a voz de Springsteen ecoa ao fundo. O filme encontra força justamente no contraste entre a grandiosidade de sua música e a pequenez de sua solidão.


Visualmente, “Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é um trabalho belíssimo. A fotografia alterna o calor nostálgico das luzes amareladas de Nova Jersey com a frieza das paisagens rurais e o peso das sombras interiores do artista. O filme cria uma atmosfera quase meditativa, na qual o tempo parece se estender e o espectador é convidado a habitar o silêncio junto com o protagonista. Esse ritmo contemplativo, no entanto, pode ser exaustivo para quem espera a energia boa de uma cinebiografia tradicional. Cooper se interessa mais pelos silêncios entre as notas do que pelos aplausos do público.  

O terceiro ato é onde o longa finalmente se liberta das convenções do gênero. Quando a depressão de Bruce se intensifica e sua relação com Faye se desintegra, o filme abandona a estrutura de ascensão e queda típica das biografias musicais e se torna algo mais íntimo e humano. Não há grandes revelações, nem redenções espetaculares. O que há é um homem tentando sobreviver ao próprio sucesso, buscando sentido na dor e no caos. Cooper trata essa jornada com honestidade e sensibilidade, evitando tanto a glamourização quanto o sentimentalismo barato. 

Jeremy Allen White oferece uma das performances mais contidas e profundas de sua carreira. Longe do estereótipo do astro, ele interpreta Springsteen como alguém cansado de ser lenda, um artista que prefere a escuridão à luz dos holofotes. Sua atuação cresce à medida que o filme se aprofunda, e há momentos em que bastam seus silêncios para traduzir o que mil diálogos não poderiam expressar. 

“Springsteen: Salve-me do Desconhecido” não é um filme para quem busca o espetáculo de palco, mas para quem se interessa pelo silêncio entre as canções, pelos fantasmas que assombram a criação e pelas dores que moldam a arte. Scott Cooper cria aqui uma obra que, embora imperfeita e por vezes arrastada, é honesta, emocionalmente poderosa e profundamente humana. Ao final, não há catarse nem triunfo, apenas um homem que encontra na vulnerabilidade a verdadeira forma de redenção.