28/05/2025

Crítica | O Esquema Fenício


Wes Anderson tem um estilo tão característico que sua assinatura se tornou uma marca registrada no cinema contemporâneo, a estética de simetria excessiva, personagens excêntricos e diálogos carregados de ironia, tudo isso embalado por um humor tão peculiar quanto profundo. Em “O Esquema Fenício”, o cineasta continua a explorar seu universo único, mas o que se observa é uma obra que, embora ainda recheada de sua inventividade visual e narração meticulosa, apresenta uma sensação de déjà vu. O filme, que mistura comédia com drama, é sobre redenção e a futilidade do poder, é elegante e encantador, mas também pode ser considerado um reflexo de sua própria fórmula já bem explorada.

O filme gira em torno de Zsa-Zsa Korda (Benicio del Toro), um magnata ambicioso que, após sobreviver a uma série de tentativas de assassinato, se vê forçado a preparar sua filha, Liesl (Mia Threapleton), para assumir o império familiar. O seu “Esquema Fenício” envolve uma série de projetos de infraestrutura gigantescos, como túneis e hidrovias, que são tão desconexos quanto as negociações que Korda tenta fechar com um elenco de figuras excêntricas e imorais. O problema central, no entanto, não está apenas na confusão das negociações ou nas conspirações políticas, mas na falha de Korda em conectar-se com a única coisa que realmente importa, sua filha e, por extensão, sua própria humanidade. 

Ao longo de sua jornada, Korda é acompanhado por uma série de personagens bizarros, como o tio assassino (Benedict Cumberbatch), a prima de moral flexível (Scarlett Johansson), e o curioso tutor sueco Bjorn (Michael Cera), que faz um dos desempenhos mais marcantes do filme. Porém, enquanto a trama se desenrola com um ritmo cadenciado, é difícil não perceber que, para além dos momentos de comédia e diálogos espirituosos, o cerne da narrativa perde um pouco de sua força.

Em termos estéticos, “O Esquema Fenício” é inegavelmente esplêndido, Wes Anderson traz uma simetria perfeita, cenários de cores bem vibrantes e uma mise-en-scène quase teatral. No entanto, algo está faltando. O nível de detalhe visual presente em seus filmes anteriores como em “O Grande Hotel Budapeste” ou “O Fantástico Senhor Raposo” não se reflete com a mesma intensidade aqui. Embora o filme tenha algumas composições visuais brilhantes, como uma sequência aérea de um banheiro meticulosamente arrumado, a sensação de novidade e encanto visual se esvai um pouco, dando lugar a uma sensação de repetição. Parece que Wes Anderson, consciente de sua própria estética, opta por não ultrapassar os limites da excentricidade visual como fazia antes, talvez por uma escolha intencional de focar mais nas relações interpessoais e na psicologia dos personagens.

Benicio del Toro, interpretando Zsa-Zsa Korda, parece desconectado emocionalmente de sua própria criação. Sua performance fria, quase impassível, é intencionalmente enigmática, sugerindo que, por mais que ele seja o protagonista, o filme está mais interessado em sua própria reflexão do que em sua resolução. O conflito interno de Korda, alguém que passou a vida perseguindo poder e riquezas, mas se encontra vazio e distante de sua filha, é, sem dúvida, o núcleo emocional da obra. No entanto, o dilema de Korda, a busca por redenção enquanto lida com as consequências de uma vida inteira de decisões egoístas não é tão explorado quanto poderia ser. Isso se torna ainda mais evidente nas sequências oníricas em que Korda enfrenta uma espécie de julgamento celestial, com a participação de Bill Murray como Deus. Estas imagens, ainda que fascinantes visualmente, acabam por não fornecer a profundidade filosófica que Wes Anderson parecia sugerir.

Em contraste, a jovem Mia Threapleton brilha como Liesl. Ela traz uma sensibilidade e humanidade que Korda falta, sendo um contraponto necessário ao caos ao seu redor. Ela representa o antídoto à obsessão do pai por poder, simbolizando uma esperança que, talvez, Korda nunca tenha percebido ser possível.

A comédia de “O Esquema Fenício” é peculiar, como de costume. Há uma leveza irreverente nas situações absurdas, mas também uma ironia que toca em questões existenciais sérias, como a busca por um legado e a futilidade de acumular riquezas sem um propósito maior. A forma como o filme brinca com o absurdo dos negócios com suas negociações e contratos que mais parecem um jogo infantil de esconde-esconde é parte do charme, mas também um reflexo do vazio do próprio mundo que Korda habita.

A presença de astros como Tom Hanks, Willem Dafoe e Scarlett Johansson, apesar de agregar um toque de familiaridade e de um brilho hollywoodiano, parece quase desnecessária. Seus personagens são meros coadjuvantes na trama, e as atuações parecem um tanto vazias, como se os atores estivessem apenas cumprindo seus papéis sem muito compromisso. Em contraste, Michael Cera, como o tutor Bjorn, consegue entregar uma das melhores atuações do filme, abraçando o tom excêntrico de Wes Anderson com uma mistura de vulnerabilidade e humor.

O Esquema Fenício é, sem dúvida, um filme de Wes Anderson, completo com seu estilo visual inconfundível e seu humor peculiar. No entanto, embora seja agradavelmente assistível e cheio de charme, falta um pouco da profundidade e complexidade que vimos em alguns de seus trabalhos anteriores. A trama, embora interessante, não tem a mesma intensidade emocional de outros trabalhos semelhantes de Wes, e o caráter filosófico do filme acaba se perdendo nas camadas de comédia e absurda burocracia corporativa. O filme é divertido, sim, mas também nos deixa com a sensação de que, por trás de suas piadas e sequências meticulosamente coreografadas, existe uma reflexão mais profunda que Anderson opta por não explorar plenamente.

Se você é fã do estilo único de Wes Anderson, certamente encontrará prazer em “O Esquema Fenício”. Mas se espera uma obra-prima tão marcante quanto suas anteriores, talvez seja melhor baixar as expectativas. O filme é mais uma conversa com o próprio cineasta sobre o sentido da vida e da paternidade do que uma história transformadora. E, no final das contas, isso pode ser mais do que suficiente.

25/05/2025

Crítica | A Lenda de Ochi

É impossível assistir A Lenda de Ochi sem lembrar da estética meticulosamente simétrica de Wes Anderson e da fórmula emocional consagrada por Steven Spielberg, onde crianças se conectam com criaturas fantásticas em jornadas de amadurecimento. Dirigido com sensibilidade e uma dose de estranheza autoral, o filme se estabelece como uma fábula ecológica melancólica, marcada por visuais encantadores e uma narrativa que prioriza o simbolismo à explicação.

A trama gira em torno de Yuri, vivida com intensidade por Helena Zengel, já conhecida por Relatos do Mundo. Aqui, ela entrega uma protagonista introvertida, mas profundamente determinada, que embarca numa jornada que mistura redenção familiar, conexão com a natureza e a clássica missão de devolver uma criatura mágica ao seu lar. É a estrutura básica da "jornada do herói", mas revestida de uma atmosfera peculiar, entre o conto de fadas sombrio e o realismo mágico.


O design dos Ochi – especialmente o bebê da espécie – é um dos grandes acertos do longa. A aposta em efeitos práticos confere ao filme um charme retrô, evocando produções dos anos 90 e fugindo da estética digital saturada do cinema contemporâneo. O pequeno Ochi, com seu olhar expressivo e design que remete diretamente ao Grogu (o "Baby Yoda"), é irresistível e parece feito sob medida para conquistar corações — e, em outro contexto, estampar prateleiras de brinquedos.

Willem Dafoe, como o pai de Yuri e caçador convicto dos Ochi, traz a sua habitual presença cênica perturbadora. Seu personagem, dividido entre o dever e o afeto, encarna as contradições de uma geração que cresceu com medo do desconhecido e reluta em abraçar a mudança. Já Finn Wolfhard, apesar de seu nome de peso, aparece pouco e tem função quase decorativa na trama, um “coadjuvante de luxo” que parece subaproveitado.

O maior risco de A Lenda de Ochi está justamente naquilo que pode se tornar sua maior virtude: o fato de não se explicar por completo. O roteiro opta por uma condução contemplativa, por vezes lenta, deixando pontas soltas e encerrando sua narrativa de forma abrupta, quase como se dissesse ao espectador: “a história que importava era essa, o resto não interessa”. Isso pode afastar um público mais convencional, mas certamente agradará aqueles acostumados ao cinema de autor e aos filmes que preferem sugerir do que concluir.

A Lenda Ochi não é um filme para todos — e talvez nem queira ser. Com uma estética artesanal, uma mensagem ambiental poderosa e uma protagonista cativante, deve encontrar abrigo entre os fãs de cinema indie e de fantasia poética. Seu destino é o de se tornar um pequeno cult, daqueles que são descobertos com carinho e guardados com afeto por um público fiel.

24/05/2025

Crítica | Confinado


Confinado, o novo thriller psicológico dirigido por David Yaroevsky, apresenta uma premissa intrigante, mas que falha em aproveitar seu conceito com a profundidade e a tensão necessárias para realmente cativar o público. A trama, centrada em Eddie (Bill Skarsgård), um pequeno criminoso que acaba preso em um SUV de luxo enquanto tenta roubar o veículo, parece promissora à primeira vista. Contudo, logo se revela uma jornada repetitiva e rasa, sem o impacto que poderia ter sido gerado por suas potencialidades.

Bill Skarsgård, em um de seus papéis mais contidos, é a única estrela que brilha, carregando o filme nas costas. Seu Eddie é um personagem desajustado, um "cara comum" cujas decisões erradas o levam a um destino tortuoso. Ao contrário de outros filmes do gênero, onde o protagonista ganha a empatia do público pela sua luta contra o sistema ou as circunstâncias, Eddie não consegue conquistar o espectador, principalmente porque suas ações e falas não são suficientemente complexas para gerarem uma conexão genuína. O personagem carece da profundidade necessária para que seu sofrimento no interior do carro, onde é cruelmente torturado, seja realmente sentido. A tentativa de construir uma camada emocional em torno de sua relação com a filha, por exemplo, não é bem sucedida. A cena onde ele dá água a um cachorro, em uma tentativa de mostrar sua humanidade, parece mais forçada do que verdadeiramente reveladora do seu caráter.

Do outro lado da equação, temos William (Anthony Hopkins), o enigmático e implacável captor de Eddie. Hopkins, como sempre, é um ator de presença inegável, mas sua interpretação de William, um homem rico e amargurado, fica aquém das expectativas. O personagem carece de motivação convincente, e a história de fundo que tenta justificar sua obsessão por vingança soa mais como uma desculpa rasa para a violência que ele impõe a Eddie. O filme tenta transformar William em um reflexo da injustiça social e do ressentimento das classes abastadas, mas falha ao não explorar de maneira mais profunda essas questões. Sua abordagem fria e calculista em relação à tortura de Eddie não resulta em uma crítica eficaz à desigualdade social, mas sim em um exercício de brutalidade desnecessária e, por vezes, repetitiva.

O maior problema de “Confinado” é a falta de risco e ousadia em seu desenvolvimento. Embora o filme comece com uma boa ideia, rapidamente se perde em uma repetição de cenas de tortura que não servem a um propósito narrativo mais amplo. A tensão que poderia surgir da situação desesperadora de Eddie é diluída pela falta de evolução da trama. Cada tentativa de fuga ou resistência de Eddie se torna previsível, pois o filme se recusa a desafiar as expectativas do público. A promessa de um thriller psicológico, onde o confronto psicológico entre os personagens seria o centro do filme, é substituída por uma sucessão de torturas físicas que acabam por se tornar enfadonhas. Não há espaço para uma batalha de vontades, pois Eddie está constantemente à mercê de William, que exerce um controle absoluto sobre ele.

Além disso, a ausência de personagens pelos quais o público possa torcer é outro obstáculo significativo para a eficácia de “Confinado”. A história é estruturada de maneira a nos fazer questionar a moralidade dos dois protagonistas, mas sem construir um cenário onde a empatia por um ou outro se faça valer. Enquanto Eddie é um criminoso de segunda classe, William é um justiceiro doente e insensível. Ambos são desprovidos de qualidades redentoras genuínas, o que enfraquece o impacto do filme. O roteiro de Michael Arlen Ross tenta fazer com que o público sinta compaixão por Eddie, mas isso se perde em sua construção, que o retrata como um homem sem muita redenção.

Por fim, a direção de Yaroevsky, tenta criar uma atmosfera de claustrofobia, utilizando o espaço restrito do SUV de maneira eficaz. As cenas que exploram o interior do carro são bem filmadas, e há uma tentativa inicial de construir uma sensação de confinamento angustiante. No entanto, essa sensação logo se perde, à medida que o filme se arrasta com cenas de tortura e monólogos intermináveis de William. O filme não consegue construir uma tensão que realmente prenda o espectador. Em vez disso, torna-se um exercício de resistência, com o público esperando ansiosamente pelo final, que, infelizmente, chega de forma abrupta e insatisfatória.

20/05/2025

CRÍTICA | LILO & STITCH


O novo remake live-action de “Lilo & Stitch” chega às telonas com uma carga emocional significativa e uma fusão entre animação e live-action, cumprindo a promessa de criar uma versão nostálgica e encantadora do clássico de 2002. Dirigido por Dean Fleischer Camp, o filme traz o inconfundível espírito de "ohana", que permeia a história de uma menina havaiana e seu alienígena travesso. A adaptação é, sem dúvida, uma das mais emocionantes e bem sucedidas dentro do atual ciclo de remakes da Disney.

A trama segue o mesmo caminho do filme original, com algumas nuances aprimoradas. Lilo (Maia Kealoha) é uma garota solitária que encontra Stitch, um experimento genético de destruição em massa. A história de amizade e aceitação cresce sob a aura do "ohana" a ideia de que família é mais do que laços sanguíneos. A relação entre Lilo e sua irmã Nani (Sydney Elizebeth Agudong) é o coração pulsante do filme, e é justamente essa profundidade emocional que o remake explora com mais intensidade. A amizade entre Lilo e Stitch, já adorada pelos fãs, também ganha uma nova camada, refletindo temas de pertencimento e superação.

Embora o filme mantenha-se fiel ao original, ele consegue injetar frescor ao focar em certos aspectos, como a dinâmica de Nani e Lilo, que se torna ainda mais palpável. A relação entre elas é mais tensa, mas também mais íntima, o que torna os momentos de reconciliação muito mais impactantes. O filme, ao explorar a solidão de Lilo e a sua jornada de cura, toca em temas como perda e aceitação de uma forma comovente, porém não tão acessível a públicos mais jovens.

Em termos de adaptação visual, o grande desafio foi trazer Stitch à vida em um formato de live-action sem perder a essência do personagem. O resultado é impressionante. Stitch, interpretado através de CGI, mantém toda a sua doçura caótica, trazendo uma conexão real com o público. A técnica de fusão entre o mundo real e o alienígena azulado é uma das mais bem sucedidas que já se viu em adaptações desse tipo. Os visuais de Hawaii, por sua vez, são fieis e maravilhosos, capturando a essência do paraíso tropical de forma quase poética.

O elenco é um dos pontos altos do filme. Maia Kealoha, estreando como Lilo, é um verdadeiro achado. Sua performance é tanto divertida quanto emocionalmente profunda, fazendo justiça ao legado da personagem. A química entre Kealoha e Agudong, que interpreta Nani, é impressionante e é essa relação que mantém o filme centrado, mesmo nos momentos mais caóticos. Zach Galifianakis, como Dr. Jumba, também entrega uma performance cheia de humor, enquanto Billy Magnussen e Courtney B. Vance acrescentam diversão e carisma aos seus papéis.

Stitch, é claro, rouba a cena, e a voz original do personagem, Chris Sanders, traz a familiaridade necessária para os fãs da animação de 2002. Embora o filme adicione alguns novos personagens e nuances à trama, a base emocional entre Lilo, Nani e Stitch permanece intacta e sólida.

A música sempre foi uma parte essencial de “Lilo & Stitch”, e o remake não decepciona nesse aspecto. As canções clássicas, como “Burning Love” de Elvis Presley, voltam a dar o tom, trazendo o ambiente havaiano à tona e mantendo o charme que fez a animação original inesquecível. A trilha sonora, composta por Alan Silvestri, é rica, com momentos que vão de pura diversão a uma melancolia tocante, amplificando o impacto emocional dos momentos mais profundos.

O remake de “Lilo & Stitch” de 2025 é, sem dúvida, um dos mais bem sucedidos reimaginamentos da Disney. Não só em termos de tecnologia e fidelidade ao material original, mas também na maneira como consegue trazer uma profundidade emocional ainda maior ao foco da história, a família, a amizade e a aceitação. Em sua essência, o filme celebra o vínculo inquebrável entre Lilo e Stitch e a importância de um lar onde todos se sintam parte.

Se a nostalgia está presente, ela não ofusca as inovações que tornam este remake relevante para uma nova geração de espectadores. “Lilo & Stitch” (2025) é mais do que uma adaptação; é uma celebração do legado de um dos filmes mais queridos da Disney, agora elevado a uma nova dimensão.

19/05/2025

CRÍTICA | MISSÃO IMPOSSÍVEL: O ACERTO FINAL

Depois de quase três décadas redefinindo os limites do que um filme de ação pode ser, “Missão Impossível - O Acerto Final” chega aos cinemas com o peso simbólico de um encerramento ou ao menos, a promessa de um. Sob o comando de Christopher McQuarrie e com Tom Cruise no auge de sua devoção kamikaze ao espetáculo, o oitavo (e talvez não último) filme da franquia é ao mesmo tempo grandioso, ambicioso, exaustivo e, por vezes, esquecível.

A ação continua sendo o motor principal da franquia, e isso o filme entrega com maestria. A sequência no submarino Sevastpol e o clímax aéreo em IMAX são “absolute cinema”, com a câmera bem coreografada e Tom Cruise desafiando a gravidade com uma entrega quase esplêndida. Não há dúvidas, ainda é impressionante ver tudo isso em um ator que se recusa a ser dublado por computação gráfica.

Mas enquanto o corpo do filme se move com vigor, sua alma tropeça. A primeira hora é um engessado "Previously on Missão Impossível", uma colagem expositiva que sacrifica ritmo e frescor em nome de uma recapitulação que parece desconfiar da memória do público. A franquia sempre flertou com a mitificação de Ethan Hunt, mas aqui o personagem vira quase uma entidade messiânica, alçado ao panteão não só da espionagem, mas da própria existência cinematográfica.

Essa gravidade auto imposta é o maior calcanhar de Aquiles do filme. O tom sombrio, os diálogos sussurrados com peso shakespeariano e o vilão digital onipresente "A Entidade" são tratados com tamanha seriedade que o charme brincalhão da franquia se esvai. O que sempre distinguiu Missão Impossível de seus pares era a consciência do absurdo, sabíamos que era tudo uma grande dança de risco, e o filme sabia que sabíamos. Em “O Acerto Final”, essa cumplicidade se perde.

O elenco veterano Simon Pegg, Ving Rhames, Hayley Atwell faz o possível para manter a leveza que o roteiro parece ter esquecido em algum lugar entre o segundo e o sétimo filme. Angela Bassett e Trammell Tillman são adições bem-vindas, com autoridade e presença, enquanto Pom Klementieff rouba cenas com uma fisicalidade ameaçadora que deixa no ar o desejo por um spin-off.

Já o antagonista humano, Gabriel (Esai Morales), é funcional, mas nada memorável. Seu papel como avatar da IA é mais simbólico do que ameaçador. E a IA, apesar de representar "todas as ameaças possíveis à humanidade", é tão abstrata que se torna quase irrelevante. O conceito de vilão digital não é novo, e aqui falta densidade para torná-lo interessante.

O subtexto do filme é claro, Missão Impossível se posiciona como bastião do "cinema de verdade" contra a desumanização digital. É Tom Cruise contra o algoritmo. A Entidade é tanto vilã narrativa quanto semiótica para um mundo dominado por inteligência artificial e deepfakes, uma mensagem relevante, mas que o filme martela com didatismo quase cômico.

Missão Impossível - O Acerto Final é tecnicamente impecável, visualmente impactante e, sim, vale o ingresso IMAX. Mas sua tentativa de ser o “Ultimato” da franquia o torna um épico que quer ser mais importante do que divertido. Em vez de confiar no charme que construiu ao longo de sete filmes, o filme tenta justificar sua própria existência com solenidade demais.

Felizmente, nos momentos em que Tom Cruise corre, pula, se pendura em aviões, mergulha em submarinos ou está de cuequinha, a velha mágica ainda está lá. Só é preciso paciência para atravessar a seriedade forçada que cerca esse universo de adrenalina.

15/05/2025

Crítica | Hurry Up Tomorrow — Além dos Holofotes


Em Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes, The Weeknd (agora caminhando para assumir oficialmente o nome Abel Tesfaye) entrega um thriller psicológico que é tão enigmático quanto revelador. Inspirado em seu sexto álbum de estúdio, o filme propõe uma imersão na mente de uma estrela em crise — e mais do que isso, sugere, em tom simbólico, a transição definitiva do artista da persona The Weeknd para sua identidade real: Abel.

A trama acompanha uma noite intensa de insônia vivida por um músico famoso, que encontra uma jovem obcecada por sua obra (interpretada com intensidade por Jenna Ortega). A partir desse encontro, o cantor mergulha em uma espiral emocional que desafia sua sanidade, seu ego e sua própria percepção de realidade. O que parece um suspense sobre obsessão logo se revela um drama introspectivo sobre identidade, solidão e a pressão da fama.

A direção opta por um estilo sensorial, com cortes não lineares, visuais carregados de simbolismo e uma trilha sonora que mistura faixas do álbum com composições inéditas. O resultado é uma experiência audiovisual hipnótica, mas que exige do espectador uma leitura subjetiva. Não há respostas fáceis — e isso pode dividir opiniões.


Embora o filme aponte claramente para o esgotamento emocional causado pela persona The Weeknd, a obra evita explicitar demais essa transição. Tudo está nas entrelinhas: as alucinações, os espelhos quebrados, os momentos de silêncio, a desconexão com o palco e o fascínio ambíguo da jovem que o acompanha — talvez uma projeção, talvez uma metáfora para o próprio público.

Esse simbolismo pode agradar profundamente aos fãs do artista, que encontrarão camadas de significado ligadas à trajetória musical e pessoal de Abel. No entanto, para o público geral, a falta de clareza narrativa e o excesso de pontas soltas podem soar frustrantes.

Apesar disso, Hurry Up Tomorrow é uma obra corajosa, que foge do óbvio e arrisca ao transformar um álbum em uma peça audiovisual complexa. Não é um filme sobre música: é sobre identidade, sobre o preço de um personagem público e sobre o momento em que o artista decide se despir dos holofotes e reencontrar a si mesmo.

Para fãs de The Weeknd, um prato cheio. Para os demais, uma viagem densa, mas nem sempre acessível

14/05/2025

CRÍTICA | MANAS

Há filmes que não se contentam em contar uma história, eles gritam, mesmo em sussurros. Manas, longa da cineasta Marianna Brennand, é um desses filmes. Nascido da urgência de expor a violência sexual infantil na Ilha do Marajó, no Pará, o filme ergue-se como um retrato feroz, sensível e profundamente necessário da barbárie cotidiana que permeia as margens invisíveis do Brasil. 

Ambientado em uma comunidade ribeirinha isolada, Manas acompanha Marcielle (Jamilli Correa, em atuação impactante e madura), uma menina de 13 anos cuja infância se dissolve diante de ciclos de violência doméstica e exploração sexual. O que a princípio soa como um drama social em tom quase bucólico, crianças colhendo açaí, brincadeiras na floresta, a vida em harmonia com o rio, logo revela-se um pesadelo silencioso, onde o abuso floresce dentro do próprio lar. 

A grande virtude do filme está em sua abordagem, a câmera de Brennand se recusa a fetichizar a dor. Nada de mostrar o abuso em cena. A violência é construída em torno do que não se mostra, do que se insinua nos olhares, nos silêncios, na sugestão. Um jogo ético e estético de extremo rigor, que transforma o não dito em denúncia ensurdecedora. É o desenho de som, aliado à fotografia de baixa saturação e luminosidade, que dá corpo aos horrores ocultos daquele cotidiano. A floresta que antes parecia mágica, logo se torna claustrofóbica.

O roteiro, assinado por um time diverso de roteiristas, incluindo a própria diretora, escapa do maniqueísmo fácil. Marcílio, vivido com desconcertante ambiguidade por Rômulo Braga, não é apenas o "monstro", ele também canta, cuida, conversa. Esse traço é fundamental para denunciar a naturalização do abuso dentro de estruturas patriarcais perversas. Danielle, a mãe (Fátima Macedo), aparentemente omissa, revela-se uma figura trágica não cúmplice, mas sobrevivente. Seu silêncio não é complacência, é resignação. É a mulher que já foi violentada e que acredita não haver saída.

A presença de Dira Paes como delegada Aretha representa o olhar externo, a possibilidade de justiça, mas é uma figura limitada, realista. Manas reconhece que a solução não virá de um salvador. Em vez disso, a fuga de Marcielle e sua irmã ao final do filme sugere não a salvação, mas uma ruptura. Uma tentativa, ainda que frágil e improvável de quebrar o ciclo.

Na construção narrativa, há um evidente didatismo, que por vezes se aproxima do risco do fatalismo, a repetição das situações de abuso pode transmitir uma sensação de clausura sem saída. No entanto, a direção soube equilibrar essa dureza com respiros de humanidade nos gestos de afeto entre as irmãs, no sonho de ter uma identidade, no simples desejo de ter sua própria rede para dormir.

A atuação de Jamilli Correa é um achado raro. Em sua estreia no cinema, ela sustenta a personagem com uma presença silenciosa, mas devastadora. Sua Marcielle não é uma heroína arquetípica, é uma menina ferida, mas lúcida, passiva, mas estrategicamente atenta. Sua luta é travada nos olhos.

Manas não é um filme fácil, nem deve ser. É um soco. Mas é também um manifesto ético sobre o papel do cinema como ferramenta de denúncia, memória e transformação. Ao escolher a ficção para abordar um tema tão real e brutal, Marianna Brennand alcança o equilíbrio delicado entre respeito, sensibilidade e contundência. E nos lembra, com tristeza e urgência, que o Brasil profundo ainda grita, mesmo que ninguém queira ouvir.

13/05/2025

CRÍTICA | PREMONIÇÃO 6: LAÇOS DE SANGUE

Quatorze anos depois do último confronto do ser humano com a inescapável morte, a franquia Premonição retorna do além com Laços de Sangue (Final Destination: Bloodlines) e para surpresa de muitos, o resultado é não apenas um revival à altura do legado, mas talvez o capítulo mais emocionalmente denso e esteticamente engenhoso da série. Sob direção de Adam Stein e Zach Lipovsky, o filme equilibra com rara precisão o sadismo cômico de suas mortes criativas com uma abordagem mais sombria e madura da finitude, algo que não se esperava de uma saga que já matou personagens com trampolins, churrasqueiras e banheiras. 

A proposta de reinvenção é anunciada desde o título. “Laços de Sangue” não reúne um grupo aleatório de adolescentes sortudos e azarados: centra-se em uma família, marcada por uma linhagem amaldiçoada desde os anos 1960, que por algum motivo jamais deveria ter existido. A premonição inicial como de praxe, um balé destrutivo e angustiante leva a uma mudança de paradigma, a morte não está apenas corrigindo falhas do destino, mas agora parece empenhada em eliminar raízes inteiras.

Esse enfoque mais genealógico e menos casual confere ao longa uma estranha solenidade. Ainda há espaço para os elaborados espetáculos de carnificina (e o público que vá preparado para nunca mais entrar em elevadores de vidro ou fazer uma tatuagem com tranquilidade), mas há também uma subcorrente emocional inesperadamente comovente. O exemplo mais marcante é a participação de Tony Todd, eterno mensageiro sombrio da franquia, em sua despedida póstuma como William Bludworth. O momento em que Todd, visivelmente fragilizado, improvisa um discurso final sobre vida e morte, é o coração pulsante de um filme que ousa sugerir que há beleza, não só horror, no fim inevitável.

Stein e Lipovsky se divertem com os medos modernos e a arquitetura do cotidiano transformando objetos banais em agentes de extermínio com uma criatividade digna de vilões dos Looney Tunes, mas com consequências fatais. A famosa “sequência de armadilha” (o prato principal de qualquer Premonição) aqui é tratada quase como uma coreografia cínica, um espetáculo de tensão e humor ácido, mais refinado do que grotesco. O tom, no entanto, nunca escorrega para o deboche puro, um risco constante em franquias que flertam com o absurdo. Há sempre uma consciência do impacto psicológico e físico das perdas retratadas, mesmo que elas venham seguidas de aplausos involuntários da plateia.

O novo elenco, liderado por Brec Bassinger, Kaitlyn Santa Juana e Teo Briones, entrega atuações eficientes dentro da cartilha da franquia, são jovens carismáticos, suficientemente complexos para não parecerem descartáveis, mas não a ponto de distrair do verdadeiro protagonista: a Morte. A química entre eles é natural e a tensão entre sobrevivência e sacrifício permeia seus diálogos, ainda que por vezes o roteiro escorregue em clichês expositivos. No entanto, o saldo é positivo, os personagens têm astúcia, e suas tentativas de burlar o destino são movidas não apenas por medo, mas por amor, um detalhe que ressignifica o tom do filme.

Visualmente, Laços de Sangue é um avanço considerável para a série. A fotografia trabalha com uma paleta que foge dos tons lavados habituais dos thrillers adolescentes, e adota uma estilização quase expressionista nas cenas mais surreais. A sequência hospitalar é um exemplo particularmente eficaz de como Stein e Lipovsky entendem o potencial estético do horror: há beleza no macabro, ordem no caos. E a trilha sonora, embora discreta, pontua bem os momentos chave, sem jamais se sobrepor à ação.

A decisão de usar um “tom investigativo”, com os personagens tentando decifrar a lógica da Morte (como se isso fosse possível), adiciona um charme metalinguístico ao filme. Em certo momento, parece que os próprios roteiristas estão refletindo sobre os limites da franquia sobre o que ainda é possível dizer, surpreender e reinventar quando todos já sabem que o final será, invariavelmente, a morte.

E é aí que Laços de Sangue triunfa: ao não evitar essa certeza, mas abraçá-la com lirismo. Sim, os espectadores vão rir das mortes improváveis. Sim, vão se esconder atrás das mãos em momentos de pura tensão e posteriormente ter pesadelos. Mas sairão da sala também com uma pontada de melancolia um lembrete de que o terror mais duradouro não está em como vamos morrer, mas no que fizemos com o tempo que tivemos antes disso.

10/05/2025

Crítica | A Mulher no Jardim


O cinema de terror contemporâneo tem encontrado no trauma e na dor emocional um terreno fértil para novas narrativas, substituindo monstros clássicos por demônios internos mais sutis, mas igualmente devastadores. "A Mulher no Jardim", produção da Blumhouse dirigida por Jaume Collet-Serra, tenta caminhar por essa trilha sombria e metafórica, mas tropeça ao transformar o luto em alegoria sem a devida coesão narrativa.

O filme se destaca, inicialmente, por sua ambientação e pela força de uma imagem central poderosa: uma mulher vestida de preto, sentada em silêncio no quintal de uma casa em ruínas. Essa figura misteriosa interpretada com um viés inquietante por Okwui Okpokwasili, encarna uma presença que não precisa de palavras para ameaçar, e é justamente aí que reside o maior trunfo do longa: a sugestão. A imagem evoca a sensação de que algo está fundamentalmente errado, não só fora de casa, mas principalmente dentro dela, tanto no espaço físico quanto no psicológico.


Danielle Deadwyler entrega uma performance intensa e profundamente comovente como Ramona, uma mãe em frangalhos tentando manter a sanidade após a perda do marido. Ela interpreta sua personagem com uma vulnerabilidade controlada, oscilando entre negação, paranoia e colapso, sustentando praticamente sozinha o peso emocional do filme. Em um filme mais sólido, sua atuação seria o centro de um drama psicológico memorável. Aqui, ela é uma âncora jogada ao mar revolto de um roteiro que não sabe exatamente para onde navegar.

O texto de Sam Stefanak parece fascinado por metáforas, mas frustrantemente apressado em explicitá-las. A mulher no quintal claramente uma encarnação do luto, da culpa ou de algum trauma enterrado deixa de ser um mistério instigante à medida que o filme insiste em explicações e reviravoltas pouco inspiradas, que diluem a tensão criada com tanto esmero na primeira hora. A construção atmosférica, que remete à pintura de Andrew Wyeth e ao folclore sulista, é eficiente, mas não encontra eco em um enredo que parece mais interessado em colecionar referências (de Us a Black Mirror) do que em desenvolver uma identidade própria.

Collet-Serra, conhecido por seu trabalho com thrillers e subversões genéricas eficazes (A Órfã, Águas Rasas), parece preso entre dois estilos: o suspense simbólico à la Ari Aster e o horror mais direto e comercial que o consagrou. O resultado é um filme que sugere profundidade, mas que, ao final, revela-se raso em sua exploração temática.


Ainda assim, não é um fracasso completo. A direção de fotografia de Pawel Pogorzelski confere ao filme uma beleza melancólica que contrasta com o terror iminente. A trilha sonora minimalista acerta ao não querer guiar o espectador pelo medo, mas sim deixá-lo pairar em um estado constante de inquietação.

"A Mulher no Jardim" é uma obra que começa com promessas visuais fortes, mas acaba se perdendo em sua própria ambição simbólica. Ao tentar elevar o gênero por meio de metáforas psicológicas e subversões narrativas, esquece que, às vezes, o terror mais eficaz é o que não precisa ser decifrado, apenas sentido. Danielle Deadwyler brilha, mas infelizmente brilha sozinha.

07/05/2025

CRÍTICA | KARATÊ KID: LENDAS

Mais do que uma simples continuação, “Karatê Kid: Lendas” é uma carta de amor ao legado das artes marciais no cinema e, surpreendentemente, uma ponte bem construída entre gerações. Com direção de Jonathan Entwistle e roteiro de Rob Lieber, o filme une o passado e o presente da franquia em uma narrativa que equilibra nostalgia, lutas coreografadas com precisão e uma nova camada emocional.

O maior trunfo de “Karatê Kid: Lendas” está na improvável, porém carismática parceria entre Daniel LaRusso (Ralph Macchio) e o Sr. Han (Jackie Chan). Macchio, retornando ao papel que o consagrou nos anos 1980, mostra domínio absoluto de seu personagem, agora mais maduro, mentor e consciente de seu papel na jornada dos mais jovens. Jackie Chan, por sua vez, continua uma força cinematográfica. Mesmo aos 70 anos, suas sequências de luta têm o mesmo brilho criativo de sempre, e sua presença como mestre é surreal, sensível e espirituosa.

O novato Ben Wang, interpretando Li Fong, é a alma renovada do filme. Trazendo uma atuação genuína, Li é um protagonista empático, um jovem deslocado entre culturas e ferido por uma perda recente, mas que encontra no karatê e no kung fu não apenas uma forma de autodefesa, mas de reconexão emocional e identidade. A trama acerta ao unir estilos de luta (karatê e kung fu) como metáfora para a fusão de origens, gerações e caminhos. Isso transforma o “confronto final” em algo mais do que um espetáculo atlético, torna-se o clímax de uma jornada pessoal e cultural.

Tecnicamente, o filme é bem acabado. As cenas de luta, como a sequência na cozinha com Chan, são coreografadas com maestria e inventividade. A cinematografia mescla o urbano de Nova York com referências visuais asiáticas, enquanto a trilha sonora alterna entre tons tradicionais e batidas contemporâneas, dando ao longa um dinamismo que sustenta sua proposta de modernizar sem trair as raízes.

No entanto, Karatê Kid: Lendas não está imune a tropeços. Alguns personagens coadjuvantes, especialmente os colegas de escola e antagonistas são pouco desenvolvidos, funcionando mais como catalisadores para o crescimento de Li do que como figuras memoráveis. Além disso, certos diálogos escorregam para o sentimentalismo excessivo, especialmente quando o filme se esforça para explicar suas metáforas em vez de simplesmente mostrá-las.

Ainda assim, esses deslizes não comprometem o impacto emocional da obra. “Karatê Kid: Lendas” consegue ser um filme que respeita o passado sem depender dele. Em tempos de franquias recicladas até a exaustão, é refrescante ver um projeto que entende sua herança, mas tem algo novo a dizer com coração, respeito e muito suor no tatame.

CRÍTICA | INVENCÍVEL


Dirigido por Jon Gunn e baseado no livro de memórias de Scott LeRette, “Invencível” é, acima de tudo, uma obra de intenções nobres. Tenta, com zelo, tocar corações, promover empatia e retratar com respeito a vida de uma criança que convive com autismo e osteogênese imperfeita. Porém, entre o desejo sincero de inspirar e a execução narrativa confusa, o filme tropeça na própria ânsia de emocionar e, em vez de nos deixar tocados, frequentemente nos deixa entorpecidos.

O protagonista, Austin (vivido com brilho e energia contagiante por Jacob Laval), é um garoto vibrante, cheio de vida, excêntrico em seus gostos e reações, que nos ganha logo nas primeiras cenas. Seja ao repetir entusiasmado suas frases favoritas sobre molho ranch ou ao caminhar com um chapéu de bobo da corte que desafia qualquer código social da infância, Austin é encantador justamente por ser fiel a si mesmo. E talvez o maior acerto do filme seja esse: nunca tenta “consertá-lo” ou apresentá-lo como um projeto a ser normalizado. Ele é quem é, e ponto. Nesse aspecto, “Invencível” acerta ao dar a Austin protagonismo emocional mesmo quando a narrativa insiste em desviá-lo para os dilemas adultos ao seu redor.

Zachary Levi interpreta o pai, Scott LeRette, um vendedor de dispositivos médicos emocionalmente instável, que afunda no álcool como válvula de escape para lidar com os desafios da paternidade. É um papel que exige vulnerabilidade e contradição, mas Levi, apesar do carisma natural, se mostra hesitante quando a trama exige profundidade. Seu Scott parece mais um amontoado de traços problemáticos, vício, insegurança, fuga em fantasia, do que um ser humano em transformação crível. A presença de um amigo imaginário, Joe (Drew Powell), reforça essa construção fantasiosa, porém pouco impactante, e se aproxima mais da pieguice do que do misticismo sutil que talvez o roteiro almejasse.

Já Teresa, a mãe vivida por Meghann Fahy, é retratada com afeto, mas pouco desenvolvida. Sua trajetória é apagada frente ao drama do marido, e suas reações incluindo o momento em que joga vinho na pia ou consola Scott após suas recaídas servem mais como marcações de enredo do que como janelas para sua própria complexidade. A personagem está ali para “aguentar” e “cuidar”, e o filme parece confortável com essa função limitada.

O principal problema de “Invencível” é seu foco narrativo disperso. O título promete um filme sobre Austin e suas experiências, suas descobertas, seu ponto de vista especial sobre o mundo. Porém, grande parte do tempo é gasta com a crise do pai: sua dificuldade em aceitar, seu alcoolismo, seu ego ferido. O roteiro quer contar a história da criança, mas não consegue se desvencilhar do drama do adulto. Em vez de um olhar verdadeiro sobre uma infância atípica, o que temos é mais um estudo sobre a redenção do homem comum diante da adversidade, o que já vimos em dezenas de dramas inspiracionais norte-americanos.



Ainda assim, há beleza nas pequenas coisas. A relação entre Austin e seu irmão Logan (Gavin Warren) é terna e bem capturada, embora pouco explorada. Logan é um exemplo da criança neurotípica muitas vezes esquecida na equação familiar quando há um irmão com necessidades especiais, e sua lealdade e empatia são comoventes. Uma pena que o roteiro o utilize mais como reforço do drama paterno do que como sujeito com dilemas próprios.

A estética do filme é a esperada em produções com selo de fé: paleta clara, cortes suaves, trilha sonora emocionalmente manipuladora e metáforas visuais, como o kintsugi, arte japonesa de reparar cerâmica com ouro. Mas enquanto essa imagem poderia ser poética, aqui soa mecânica, forçada. Falar de consertos e imperfeições é útil quando há rachaduras a serem trabalhadas; no caso de Austin, ele é inteiro desde o começo e é isso que o torna inspirador.

A tentativa de inserção de elementos animados ou recursos visuais estilizados como cenas que remetem à imaginação fértil de Austin oferecem momentos breves de inventividade, mas não sustentam o ritmo nem o tom da obra. O filme se contenta demais em ser um amontoado de momentos atraentes, diálogos explicativos e soluções fáceis para dilemas difíceis. O alcoolismo de Scott é resolvido com uma epifania conveniente; a internação de Austin após um episódio de agressividade se encerra com uma volta ao lar sem consequências reais.

Há, no entanto, um mérito indiscutível: Invencível jamais pinta o autismo ou a deficiência óssea como uma “maldição” ou algo que precise ser superado. Austin é amado, respeitado e valorizado por quem é, e não apesar de suas condições. Isso, por si só, o coloca acima de muitos outros filmes que, embora bem intencionados, tropeçam em caricaturas capacitistas ou em sentimentalismos que desumanizam sob o pretexto de inspirar

01/05/2025

CRÍTICA | HOMEM COM H

Empolgante, necessário e visualmente atraente, "Homem com H" não é apenas uma cinebiografia: é um manifesto sensorial da existência indomável de Ney Matogrosso. Dirigido por Esmir Filho e com uma performance esplêndida de Jesuíta Barbosa, o filme mergulha em mais de cinco décadas da vida de um dos maiores ícones da arte brasileira com coragem, poesia e autenticidade, recusando os caminhos fáceis e formulaicos do gênero biográfico.

A espinha dorsal da narrativa é a conflituosa relação de Ney com seu pai, um militar autoritário que impôs desde cedo os moldes rígidos da masculinidade. Esse confronto primordial não apenas estrutura o filme, mas também serve como catalisador simbólico para todas as lutas que New Mato Grosso enfrentou ao longo da vida, contra os dogmas de gênero, contra a repressão sexual, contra o conservadorismo cultural e político. Homem com H transforma esse embate íntimo em um espelho de reflexões sociais mais amplas.

A atuação de Jesuíta Barbosa é, sem exagero, uma entrega completa ao papel. Ele não apenas interpreta Ney, ele o encarna com delicadeza, fúria e encantamento. Seus movimentos, seu olhar, sua corporeidade em cena especialmente nas sequências performáticas capturam não só a estética andrógina, mas a inquietação existencial que faz de Ney uma figura eternamente em ebulição. Essa fusão de ator e personagem é uma das maiores forças do longa.

Tecnicamente, o filme é impecável. A fotografia de Azul Serra foge da cartilha sépia das cinebiografias convencionais e abraça cores vibrantes, especialmente os azuis e vermelhos que ressaltam o caráter onírico e transgressor de Ney. A direção de arte de Thales Junqueira e o figurino deslumbrante com peças originais e recriações meticulosas materializam o espírito revolucionário do artista. A trilha sonora, composta por 17 músicas licenciadas, costura as cenas com emoção e ritmo, transformando o filme em um musical libertário.

Narrativamente, Esmir Filho opta por uma estrutura fragmentada, guiada por memórias e sensações, o que reforça o caráter lírico e subjetivo da obra. Se por um lado essa fluidez emocional pode parecer dispersa, por outro, ela é coerente com a natureza do próprio Ney: indomável, mutável, resistente à normatização. O fio condutor, a sombra do pai garante a coesão necessária para que o filme não se perca no excesso de informação.

O longa também não evita as dores. A epidemia de HIV, que ceifou vidas na comunidade LGBTQIAPN+ e vitimou o grande amor de Ney, Marco de Maria, é tratada com dignidade e sem sensacionalismo. Ao contrário de filmes que exploram o sofrimento como fim em si, Homem com H transborda resistência e afetividade. É um filme que recusa o lamento, mas não esconde as cicatrizes.

Homem com H não é uma cinebiografia para prêmios é para inquietações. É sobre ver, ouvir, sentir. É um filme que dança, chora, desafia e, acima de tudo, vive. Um retrato apaixonado e sem filtros de alguém que transformou sua própria vida em arte e afronta. Um homem que ousou ser com H de humano, de híbrido, de herético.

CRÍTICA | THUNDERBOLTS*

Depois de uma sequência de fracassos criativos e comerciais que ameaçaram corroer os alicerces do império Marvel, Thunderbolts* surge como uma tentativa arriscada de reinventar a fórmula de super-heróis. Dirigido por Jake Schreier, o filme reúne uma trupe de personagens secundários, rejeitados e emocionalmente danificados, e os empacota como uma espécie de "Vingadores da terapia em grupo". O resultado é um thriller de espionagem disfuncional e estilizado, que mistura ação, drama e traumas não resolvidos e consegue, contra todas as probabilidades, entreter.

O que torna Thunderbolts* minimamente relevante e até ousado não é seu enredo, que flerta com a saturação típica do gênero, mas seu foco narrativo nas feridas emocionais dos personagens. Yelena Belova (Florence Pugh), irmã da Viúva Negra, lidera esse grupo de desajustados com uma combinação agridoce de cinismo e vulnerabilidade. Sua atuação é a espinha dorsal do filme, oferecendo profundidade emocional em um universo que, até aqui, costumava apenas acenar na direção da complexidade psicológica antes de explodir mais um prédio.

Yelena, assim como os demais Thunderbolts* o Red Guardian decadente (David Harbour), o ex-Capitão América homicida John Walker (Wyatt Russell), a etérea e mal definida Ghost (Hannah John-Kamen) e o atribulado Bob (Lewis Pullman) carrega no corpo e na mente os destroços de escolhas passadas. Eles não são heróis em busca de glória, mas sobreviventes tentando encontrar algum significado. 

O roteiro tenta explorar esse terreno com sensibilidade, ainda que, por vezes, tropece em sua própria ambição: os traumas são discutidos com frequência quase didática, e a estética de "terapia pop" corre o risco de parecer mais uma moda do que um mergulho honesto em saúde mental.

Ainda assim, Thunderbolts* acerta em alguns pontos. O filme tem estilo, o que já o coloca à frente de boa parte da fase mais recente do MCU e conta com momentos de direção visualmente inspirada, como a sequência inicial de Yelena prestes a saltar de um arranha-céu, que traduz com elegância a conexão entre o abismo físico e o emocional. A ação, conduzida com precisão e criatividade, respeita o tom do filme ao evitar a grandiloquência vazia e investir em coreografias quase íntimas, onde os golpes trocados parecem tanto externos quanto internos.

É claro que há excessos. O terceiro ato tropeça ao tentar evocar o espírito psicodélico de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, sem a mesma coesão ou genialidade. A batalha final nos tais “quartos interligados de vergonha” é uma metáfora visual interessante, mas mal resolvida é mais admirável em intenção do que em execução. E a personagem Ghost, que já fora pouco desenvolvida em sua origem, continua sendo um mistério sem recompensa.

No entanto, quando Florence Pugh está em cena o que é felizmente frequente, o filme ganha alma. Seu domínio de nuances, sua entrega física e emocional, e seu timing cômico afiado tornam Thunderbolts* não apenas assistível, mas memorável. Pugh transforma um blockbuster de franquia em um estudo de personagem que merecia reconhecimento além das fronteiras do gênero, apesar de ser a única contemplada.

Thunderbolts* não redefine o que um filme de super-herói pode ser, mas lembra que até os universos mais saturados podem encontrar frescor se decidirem olhar para dentro dos seus personagens e de sua própria história, porém isso não necessariamente entrega algo perfeito. Com falhas, sim, mas com coragem e sinceridade, o filme talvez seja o suspiro que a Marvel precisava. E, com sorte, o primeiro passo de uma nova fase menos preocupada com cronogramas intergalácticos e mais interessada no que significa, afinal, ser humano mesmo que se use uniforme de lycra.