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crítica | a hora do mal


Com “A Hora do Mal”, Zach Cregger consolida-se como uma das vozes mais criativas e contundentes do terror contemporâneo. Após o sucesso surpreendente de Barbarian (2022), seu novo trabalho eleva o gênero a outro patamar, mesclando tensão, humor ácido e uma crítica social incisiva. O que poderia ser apenas mais um filme sobre desaparecimento de crianças em uma cidade pequena torna-se, pelas mãos de Cregger, uma meditação sombria sobre culpa coletiva, falência institucional e a fragilidade emocional das comunidades suburbanas dos Estados Unidos. 

O enredo parte de um mistério inquietante: em uma noite qualquer, quase vinte crianças de uma mesma sala de aula simplesmente abandonam suas casas e desaparecem. Sem pistas concretas, gravações de câmeras mostram apenas as crianças caminhando em silêncio com os braços estendidos como aviões desgovernados. Em meio à histeria coletiva, recai sobre a professora Justine Gandy, vivida pela excelente Julia Garner, o peso da desconfiança e do julgamento social. Com um passado conturbado e fragilidades pessoais latentes, ela se vê acuada pela mídia, pelos pais e por si mesma. Cregger constrói aqui uma personagem profundamente humana, imperfeita, emocionalmente devastada, mas movida por um amor genuíno por seus alunos. 

Ao invés de se limitar à perspectiva de Justine, o diretor opta por uma estrutura episódica, alternando o foco narrativo entre diferentes personagens afetados pela tragédia. É como um quebra-cabeça montado a partir de múltiplas peças desconexas que, pouco a pouco, revelam um panorama mais amplo e assustador. Há Archer, interpretado por Josh Brolin, pai de um dos meninos desaparecidos que transforma seu luto em raiva. Paul, um policial fragilizado por traumas e vícios, encarna a falência moral das forças de segurança. James, vivido por Austin Abrams, é o retrato do abandono social, um jovem tragado pelas drogas e pelo desprezo popular. E há Alex, o único aluno que não desapareceu, cuja presença misteriosa paira como uma interrogação sobre o que realmente aconteceu naquela noite. 


Essa multiplicidade de pontos de vista torna “A Hora do Mal” uma experiência semelhante a Magnólia ou Pulp Fiction, filmes que constroem sua força narrativa na justaposição de histórias que convergem para um núcleo emocional comum. No caso de Cregger, esse núcleo é o fracasso coletivo de uma sociedade que, ao invés de proteger seus membros mais vulneráveis, os transforma em bodes expiatórios ou simplesmente os negligencia. O horror do filme não está apenas nas cenas de tensão ou violência, mas no desconforto moral provocado pela forma como tratamos nossas tragédias. É um terror profundamente americano, alimentado pelo medo, pela desinformação e pela obsessão em buscar culpados ao invés de soluções. 

Visualmente, o filme é um espetáculo de contrastes. O diretor de fotografia Larkin Seiple cria ambientes suburbanos que exalam familiaridade e ameaça ao mesmo tempo. A câmera encontra beleza no grotesco, especialmente nas sequências oníricas que mergulham em atmosferas surrealistas e nos lembram que o medo, muitas vezes, é mais psicológico do que físico. A trilha sonora e o design de som contribuem para essa sensação constante de desconforto e iminência, enquanto o roteiro equilibra habilmente momentos de humor ácido com reviravoltas chocantes. 

O trabalho de elenco é um ponto alto. Julia Garner oferece uma performance poderosa, expressando com sutileza a degradação emocional de Justine e sua posterior resiliência. Josh Brolin, como Archer, entrega um de seus papéis mais humanos e frágeis, oscilando entre a fúria e o arrependimento. Alden Ehrenreich confere a Paul uma intensidade contida, revelando as rachaduras de um sistema que colapsa por dentro. Austin Abrams rouba cenas com seu retrato doloroso e sarcástico de um jovem à deriva. E Amy Madigan merece todos os elogios por sua participação impactante e perturbadora. 

Mas o que torna “A Hora do Mal” especialmente relevante é seu subtexto. O filme denuncia, sem didatismo, a maneira como a sociedade americana transforma suas próprias falhas em espetáculos. A tragédia vira narrativa para a mídia, a dor é instrumentalizada por pais desesperados, a polícia finge controle, e os reais problemas estruturais são ignorados. Em vez de assumir responsabilidades, os personagens projetam culpa nos outros, em um ciclo interminável de alienação. O título original, Weapons, não poderia ser mais simbólico pois, todos, em algum momento, tornam-se armas, seja da negligência, da ignorância, da fúria ou do desespero. 

Zach Cregger não está apenas entregando um excelente filme de terror. Ele está desafiando as convenções do gênero com uma abordagem autoral, reflexiva e ousada. Ao conjugar entretenimento e crítica social com maestria, “A Hora do Mal” se impõe como uma obra-prima contemporânea do horror psicológico. É um filme que assusta não apenas pelos seus sustos, mas por nos obrigar a encarar o espelho da nossa própria complacência. Um lembrete de que, por trás das cercas brancas e ruas silenciosas dos subúrbios americanos, o mal não apenas se esconde ele é cultivado no "American Way of Life".

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