crítica | O Último azul
"O Último Azul", novo trabalho do diretor Gabriel Mascaro, se insere com perfeição no campo da distopia social, onde a crítica à realidade é feita com uma sensibilidade poética e uma abordagem visual de tirar o fôlego. Se o cineasta já havia conquistado seu espaço com produções como “Boi Neon” e “Divino Amor”, é em “O Último Azul” que ele atinge um novo patamar, apresentando uma história mais madura e intimista, ao mesmo tempo que não perde o olhar humanitário e preciso sobre a sociedade brasileira.
A trama se passa em um futuro próximo, mas não tão distante da realidade, onde um governo autoritário impõe que cidadãos com mais de 75 anos sejam deslocados para uma colônia habitacional para idosos. Tereza, interpretada com muita maestria por Denise Weinberg, é uma mulher de 77 anos que se recusa a aceitar sua "despedida" e embarca em uma jornada fluvial na região amazônica, buscando o direito de decidir seu próprio destino. A performance de Denise Weinberg, repleta de nuances, traz à tona uma personagem complexa, que, longe de se render ao papel de idosa passiva e invisível, se reinventa, questionando o lugar que a sociedade lhe reservou.
O filme é uma reflexão profunda sobre o etarismo e a desumanização das pessoas mais velhas, temas que são tratados de forma cuidadosa, sem cair na armadilha do sentimentalismo. O envelhecimento, neste contexto, não é apenas uma questão física, mas uma batalha pela autonomia e pela dignidade. Tereza não está em busca de uma "redenção romântica", mas de um novo significado para sua vida. Ao longo de sua jornada, ela se depara com outros personagens, como Cadu (Rodrigo Santoro) e Ludemir (Adanilo Reis), que também enfrentam suas próprias limitações e busca de sentido, mas o impacto de seu encontro com Tereza é explícito, desafiando seus próprios conceitos de liberdade e existência.
Gabriel Mascaro é habilidoso em criar uma atmosfera imersiva que vai além da mera locação exótica da Amazônia. A floresta e seus rios tornam-se personagens vivos, cujas texturas e paisagens são capturadas pela câmera de Guillermo Garza de maneira hipnótica, reforçando as temáticas do filme. A natureza não é apenas um pano de fundo; ela pulsa, com seus mistérios e fragilidades, acompanhando a trajetória de Tereza e seus encontros com o sobrenatural. O uso de elementos como os caracóis alucinógenos e os crocodilos não é mera estética, mas uma metáfora para a transformação interna da protagonista, sugerindo que o processo de libertação envolve tanto o físico quanto o espiritual.
O realismo mágico aqui se desvela de forma sutil, fluída e orgânica. Não se trata de uma fuga para o fantástico, mas de uma integração natural do simbólico com o concreto. As figuras místicas presentes na história funcionam como aliadas de Tereza, em um universo onde o invisível se entrelaça com o visível e o espiritual influencia a realidade de maneira palpável. Nesse sentido, o filme oferece um olhar de resistência contra as políticas opressivas e desumanizadoras que, embora amplificadas para efeito dramático, não estão tão distantes de nossa realidade.
A crítica social que permeia a história não é explícita de forma panfletária, mas sim construída através da jornada de Tereza. Ela, assim como muitos idosos ao redor do mundo, se vê privada da liberdade de viver como deseja, sendo obrigada a se submeter a um sistema que a vê como descartável. No entanto, sua resistência, ainda que silenciosa e simbólica, é uma forma poderosa de dissidência contra esse apagamento social. Ao contrário de muitos filmes que sugerem uma "grande virada" ou um final reconfortante, Mascaro deixa o desfecho de Tereza em aberto, sugerindo que sua verdadeira vitória reside na simples decisão de continuar vivendo de acordo com suas próprias escolhas.
A fotografia, a direção de arte e a atuação de Denise Weinberg são os pilares que sustentam a complexidade do filme. Mascaro consegue, com uma direção precisa e sensível, equilibrar a tensão social com a construção de um retrato íntimo e poderoso de uma mulher em busca de sua própria autonomia. Não há uma resolução simples para os dilemas enfrentados por Tereza, mas a narrativa não exige uma conclusão clara para que sua mensagem ressoe profundamente.
O Último Azul é notável, não apenas pela sua crítica incisiva ao envelhecimento e ao etarismo, mas também pela sua habilidade de capturar a beleza e a luta pela liberdade de uma maneira poética e impactante. Gabriel Mascaro, com sua visão amadurecida, entrega um filme que não apenas desafia as convenções do cinema brasileiro contemporâneo, mas também provoca uma reflexão necessária sobre o que significa resistir à opressão, em todas as suas formas.
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