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Crítica | Amores Materialistas


Novo longa-metragem da diretora e roteirista Celine Song, é uma comédia romântica moderna que, embora revestida com o brilho dos romances tradicionais, se revela muito mais incisiva, sóbria e provocadora. Após o sucesso melancólico e delicado de "Vidas Passadas", Song volta ao universo das relações humanas, agora com um olhar aguçado sobre os dilemas contemporâneos do amor e do dinheiro. Ambientado na glamourosa Nova York do século XXI, o filme se apropria da estética dos romances leves de Jane Austen e das comédias românticas dos anos 2000 para subvertê-los, propondo uma análise desconfortavelmente realista sobre o casamento, os relacionamentos e os valores que nos norteiam.

A protagonista Lucy, interpretada por Dakota Johnson, é uma casamenteira profissional em uma agência de elite que promete aos clientes encontrar o amor da sua vida. A promessa, no entanto, vem envolta em um verniz corporativo: a compatibilidade amorosa é tratada como um algoritmo offline, as emoções se tornam transações e os relacionamentos são desenhados com base em métricas e filtros. A atuação de Dakota Johnson verbera uma sutileza afiada, conseguindo expressar tanto o cansaço emocional de sua personagem quanto a ironia de alguém que vive de vender sonhos românticos que já não acredita. Seu figurino elegante e despretensioso reforça essa persona blasé, sofisticada e incrivelmente ciente das regras do jogo social em que atua. 

É nesse cenário que surge o conflito principal do filme, um triângulo amoroso entre Lucy, Harry (Pedro Pascal) e John (Chris Evans). Harry é um milionário encantador, calmo e elegante, enquanto John é o ex-namorado pobre, mas carismático, artista falido e garçom de buffet. A dicotomia entre amor e dinheiro, antigo dilema do romance clássico, aqui ganha contornos atualizados e mais sombrios. Lucy admite abertamente que pretende se casar por dinheiro, não por cinismo, mas por convicção prática. Isso é dito com tanta naturalidade e frieza que o espectador se vê desafiado a julgá-la. Song não transforma Lucy em vilã nem heroína, apenas em alguém tentando sobreviver em um sistema que premia quem calcula bem as apostas do coração.


A escolha de Song de retratar os pretendentes como homens íntegros, afetuosos e respeitosos, impede que a resolução da história seja óbvia ou fácil. Não há antagonistas caricatos, apenas pessoas reais em situações emocionalmente complexas. Evans entrega aqui um dos melhores trabalhos de sua carreira, despindo-se da perfeição heróica para se apresentar vulnerável, apaixonado e ligeiramente desesperançoso. Sua química com Johnson é evidente, não só pelas trocas calorosas, mas pela dor silenciosa que compartilham em cenas mais introspectivas. Pedro Pascal, embora mal aproveitado em termos de química romântica, convence como um ideal inalcançável, um homem aparentemente perfeito que encarna o fetiche do provedor sem mácula.

O roteiro de Song brilha justamente na tensão entre esses opostos. O texto, recheado de diálogos cortantes e dolorosamente verdadeiros, capta o espírito de um tempo em que o romantismo é filtrado por mapas mentais, planos de carreira e projeções de estabilidade financeira. A diretora transforma observações desconfortáveis em frases memoráveis, fazendo ecoar as melhores tradições de roteiristas como Nora Ephron e Billy Wilder. A questão nunca é apenas quem Lucy ama, mas o que ela pode perder ou ganhar ao seguir seu coração em um mundo onde amor e pragmatismo raramente coexistem. 

Visualmente, o filme é requintado. A fotografia de Shabier Kirchner valoriza tanto os ambientes sofisticados quanto os momentos de intimidade, oferecendo uma estética polida sem cair no artificial. A trilha sonora de Daniel Pemberton é outro destaque, transicionando com fluidez do glamour superficial para a melancolia delicada à medida que a trama avança. Pequenos detalhes visuais, como as lâmpadas em um quintal durante uma conversa entre Lucy e John, carregam simbolismos de nostalgia e desejo por algo perdido. 



"Amores Materialistas" poderia facilmente seguir o caminho previsível das comédias românticas convencionais. Poderia encerrar com uma declaração de amor grandiosa, um beijo sob a chuva e uma música pop no fundo. Mas Celine Song rejeita essa via confortável. Ao invés disso, opta por uma conclusão que é ao mesmo tempo ambígua e honesta. O final não resolve todos os dilemas, nem oferece certezas. Ele apenas reafirma o que o filme sempre sustentou: que amar, escolher, ceder e resistir são atos tão imprevisíveis quanto profundamente humanos.

Nesse sentido, o filme se aproxima mais de uma etnografia urbana existencial do que de uma fantasia escapista. Há ecos de Eric Rohmer na maneira como Song filtra o glamour por uma lente realista, quase sociológica. O luxo dos cenários e o apelo dos protagonistas não escondem o cinismo estrutural do universo que habitam. O casamento, como Lucy afirma a certo momento, sempre foi uma transação. O que muda são os termos, os contratos e os disfarces. 

Apesar de algumas inconsistências de ritmo e de uma química irregular entre os triângulos amorosos, "Amores Materialistas" é uma obra sofisticada e corajosa. Em uma época de narrativas fáceis e emoções plastificadas, Song aposta na complexidade, na incerteza e na vulnerabilidade como ferramentas para contar uma história que nos obriga a encarar o espelho. Talvez o filme não ofereça a catarse esperada por muitos espectadores acostumados ao romantismo doce e inofensivo, mas, em troca, entrega algo mais valioso: uma reflexão sincera, incômoda e profundamente relevante sobre o que significa amar em tempos de transações emocionais. 

Celine Song reafirma, com este segundo longa, seu lugar como uma das vozes mais interessantes do cinema contemporâneo. Ela entende que os grandes dilemas do coração não mudaram tanto assim, apenas ganharam novas camadas, aplicativos e cifras. "Amores Materialistas" é, antes de tudo, um retrato sensível e sagaz de como tentamos desesperadamente equilibrar sentimento e sobrevivência em um mundo cada vez mais voltado para o desempenho, o sucesso e a imagem. Imperfeito, mas necessário, o filme é um lembrete de que, mesmo em tempos cínicos, ainda é possível fazer cinema romântico com alma e inteligência.

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