CRÍTICA | Mickey 17
O sul-coreano Bong Joon-ho retorna ao cinema com “Mickey 17”, sua aguardada continuação como diretor após o estrondoso sucesso de “Parasita” (2019). Desta vez, o diretor mergulha na ficção científica para construir uma sátira distópica que combina humor ácido, niilismo filosófico e crítica social em uma narrativa que parece ter sido lançada na hora certa para dialogar com os turbulentos tempos políticos contemporâneos.
Baseado no romance “Mickey 7”, de Edward Ashton, o filme se afasta dos clichês tradicionais da ficção científica para propor uma reflexão incômoda sobre a exploração da classe trabalhadora, a alienação do indivíduo e o autoritarismo crescente em um futuro não tão distante.
A trama acompanha Mickey Barnes (Robert Pattinson), um "Dispensável" em uma missão interplanetária para colonizar o planeta gelado “Niflheim”. Sua função é simples, mas macabra, realizar tarefas letais ou experimentar condições de risco para proteger os membros mais valiosos da tripulação. Quando morre o que acontece frequentemente Mickey é impresso novamente por uma bioimpressora 3D, mantendo intactas suas memórias e traumas.
O conceito de clones sacrificáveis não é novo na ficção científica, mas Bong injeta na história uma abordagem profundamente humana, transformando Mickey em uma categoria do trabalhador precário, condenado a uma existência cíclica onde sua vida só tem valor enquanto servir à produtividade.
A ironia central do filme é que cada versão de Mickey é menos "humana" que a anterior, tornando-se mais ressentida, cínica e disposta a quebrar as regras. Pattinson, em uma das atuações mais estranhas de sua carreira, interpreta várias encarnações do mesmo personagem, desde o servil e desajeitado “Mickey 17” até o vingativo e astuto “Mickey 18”, criando um jogo cômico de duplicidade que oscila entre o absurdo e o patético.
A dinâmica entre as cópias questiona o que nos define como indivíduos, memória, identidade ou comportamento, e expõe como a lógica capitalista reduz a vida humana a um recurso reciclável.
Enquanto Mickey tenta sobreviver, a colônia é governada pelo megalomaníaco Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um líder que mistura fanatismo religioso, supremacia branca e capitalismo predatório em um projeto de colonização fascista. A metáfora com o trumpismo é escancarada, desde os bonés vermelhos que seus seguidores usam até o discurso de "pureza genética" para justificar a reprodução seletiva da população.
A presença de Toni Collette como sua esposa gourmet obcecada por requintes luxuosos adiciona um toque perversamente cômico à dinâmica opressiva, sublinhando a hipocrisia da elite colonizadora.
Bong Joon-ho nunca se contenta em apenas apontar o dedo para os vilões. O filme se diverte com o fato de que todos os personagens heróis e vilões estão moralmente comprometidos. Mickey, mesmo como protagonista, é egoísta, covarde e muitas vezes desprezível. O humor do filme surge da percepção desconfortável de que ninguém realmente merece redenção.

As mortes grotescas e acidentais evocam a surpresa do espectador, enquanto os diálogos repletos de sarcasmo lembram a semiótica do mundo atual. Essa combinação torna o filme mais cômico do que aterrorizante, mas também profundamente deprimente.
Visualmente, “Mickey 17” é uma mistura de estética retrofuturista e efeitos digitais sofisticados. A fotografia fria e claustrofóbica de “Darius Khondji” reflete o vazio existencial da colônia, enquanto a direção de arte aposta em designs mais desgastados, que lembram filmes como “Alien” e “Blade Runner”.
O ritmo do filme, pode alienar parte do público. Bong não tem pressa em desenvolver a trama, privilegiando momentos de introspecção e conversas filosóficas em detrimento da ação. O segundo ato, especialmente, pode parecer arrastado para aqueles que esperam uma narrativa mais convencional.
“Mickey 17” é uma sátira de ficção científica que se equilibra entre o absurdo e o trágico, denunciando a desumanização promovida pelo capitalismo e os perigos do autoritarismo disfarçado de utopia. Bong Joon-ho entrega uma obra complexa e profundamente pessimista, na qual mesmo a resistência parece condenada à derrota.
Embora o filme não alcance a mesma força narrativa de “Parasita”, ele se destaca por sua ousadia e timing político, servindo como um reflexo cruelmente divertido do mundo em que vivemos. Robert Pattinson comprova mais uma vez seu talento camaleônico, enquanto Bong reafirma sua posição como um dos diretores mais provocadores do cinema contemporâneo.
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