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Crítica | Predador: terras selvagens

Predador: terras selvagens, representa uma ousada reinterpretação da franquia clássica de ação e ficção científica, conduzida por Dan Trachtenberg, que mais uma vez prova compreender o potencial simbólico e cinematográfico de seus caçadores intergalácticos. Longe da brutalidade crua e do suspense militarista que definiram o filme original de 1987, esta nova entrada desloca o olhar para o interior da cultura Yautja, transformando o predador em protagonista e humanizando o monstro. O resultado é uma obra visualmente deslumbrante, conceitualmente ambiciosa e emocionalmente surpreendente, ainda que suavizada por um tom mais leve e acessível.

A história se passa no planeta Genna, conhecido como o “planeta da morte”, um ambiente inóspito onde cada forma de vida parece ter evoluído para devorar outra. É nesse cenário que Dek, um jovem predador considerado fraco e indigno por seu próprio clã, busca provar seu valor. Rejeitado por seu pai e enviado em uma missão suicida para caçar a lendária criatura Kalisk, Dek encarna o arquétipo do herói relutante que, ao longo da jornada, se confronta não apenas com inimigos externos, mas com as próprias crenças que moldaram sua identidade. É nesse ponto que “Terras Selvagens” se distingue das produções anteriores da franquia, substituindo o ciclo de caça e vingança por uma história de amadurecimento e autodescoberta.

Logo após chegar a Genna, Dek encontra Thia, uma androide da corporação Weyland-Yutani, sobrevivente de uma expedição fracassada. Ela é interpretada por Elle Fanning em uma performance extraordinária que combina doçura e tragédia, alternando entre ingenuidade infantil e uma inteligência profunda, quase filosófica. Desmembrada e reduzida à metade superior do corpo, Thia se arrasta como uma ginasta em barras paralelas, mas nunca perde o brilho nos olhos nem a curiosidade pela vida. A parceria improvável entre ela e Dek, uma máquina que busca humanidade e um guerreiro que precisa aprender empatia, se torna o eixo emocional do filme.

A relação entre os dois é o coração pulsante de “Predador: terras selvagens”. Inicialmente marcada pela desconfiança, ela evolui para uma cumplicidade quase espiritual. Dek carrega Thia como uma mochila viva, irritado com seu falatório incessante e suas perguntas sobre a anatomia Yautja, mas aos poucos passa a depender de sua sabedoria e sensibilidade. Thia, por sua vez, vê em Dek um ser capaz de aprender o valor da cooperação, algo que os predadores sempre desprezaram. O filme, então, torna-se menos uma história de caça e mais uma parábola sobre a sobrevivência coletiva, ecoando a lição de que a verdadeira força não está na solidão, mas na capacidade de proteger e compreender o outro.

Trachtenberg combina referências do cinema de aventura dos anos 1980 com uma estética contemplativa inspirada em Terrence Malick. As paisagens alienígenas de Genna são exuberantes e mortais, filmadas com uma beleza hipnótica que transforma a natureza em um personagem vivo. As criaturas são de um design impecável, há insetos translúcidos que explodem em chamas, anfíbios gigantes que se camuflam na vegetação, e plantas carnívoras que atacam como serpentes. Tudo respira coerência biológica e visual, um testemunho do cuidado na construção desse ecossistema hostil. Cada sequência de ação é desenhada com clareza e propósito, evitando o caos visual de blockbusters recentes. 

Ainda que o filme mantenha o DNA de “Predador”, a violência foi domesticada. Trachtenberg adota uma classificação para 16 anos, trocando o gore característico por uma intensidade mais psicológica. O sangue verde e o fluido sintético substituem o horror explícito, sem que o senso de perigo se perca completamente. Há cenas de combate engenhosas, especialmente quando Dek é forçado a improvisar armas com os elementos do ambiente, lembrando o engenho de “O Regresso” e “Prey”. Porém, o foco nunca é o espetáculo da morte, e sim o processo de aprendizado que transforma a caça em coexistência.


O filme também dialoga com o universo de “Alien”, unindo as franquias sob a sombra da Weyland-Yutani. Thia e sua “irmã” Tessa, também interpretada por Fanning, representam as duas faces da inteligência artificial: uma programada para obedecer, outra capaz de sentir. Quando Tessa ressurge, fria e fiel à corporação que a criou, o confronto entre as duas sintetiza o dilema central de “Terras Selvagens”, o embate entre programação e livre-arbítrio, entre instinto e compaixão. É nesse momento que o filme revela sua alma mais reflexiva, ao mostrar que tanto androides quanto predadores estão presos a códigos que precisam ser transcendidos para se tornarem verdadeiramente vivos.

Dek, por sua vez, descobre que os valores de sua espécie, honra, força e domínio são máscaras para o medo da vulnerabilidade. A presença de Thia o obriga a reconsiderar o que significa ser guerreiro. Quando ela lhe diz que “sobreviver sozinho não é viver”, a frase ecoa como um mantra que redefine não apenas o personagem, mas a própria mitologia da franquia. Pela primeira vez, um predador aprende a proteger, não a destruir. Essa inversão de papéis dá ao filme um tom quase poético, um estudo sobre empatia em meio à selvageria. 

Há, é claro, concessões ao público mais jovem e ao estilo Disney de aventura, resultado direto da aquisição da Fox pelo estúdio. A presença do pequeno Bud, uma criatura híbrida entre macaco e tatu, serve como alívio cômico e símbolo de ternura, evocando inevitavelmente o fenômeno Baby Yoda. Apesar do risco de se tornar mero artifício comercial, o personagem funciona como espelho da inocência que Thia desperta em Dek, reforçando o tema da conexão entre espécies. Ainda assim, a leveza e o humor nunca anulam completamente o peso simbólico do filme, que segue tratando de dilemas morais e existenciais com surpreendente maturidade.


“Predador: terras selvagens” é, acima de tudo, uma reinvenção corajosa. Dan Trachtenberg compreende que, para manter uma franquia viva, é preciso libertá-la das amarras do passado. Ao transformar o caçador em aprendiz, o monstro em protagonista e o horror em introspecção, ele devolve à saga uma vitalidade que há muito se perdera. É um filme sobre romper ciclos de violência, de obediência e de isolamento e sobre descobrir que até os seres mais temidos do universo podem evoluir.  

Pode não ser o “Predador” mais sangrento, mas é certamente o mais humano. Em meio a batalhas, criaturas e paisagens alienígenas, “Terras Selvagens” encontra algo raro no cinema de ficção científica contemporâneo, uma alma.

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