CRÍTICA | NOSFERATU
Robert Eggers, conhecido por sua habilidade em mergulhar fundo nas complexidades históricas e psicológicas, traz uma reinvenção impressionante do clássico de terror de 1922, Nosferatu, de F.W. Murnau. Esta versão, ambientada no século XIX, é mais do que uma mera atualização de uma obra prima do cinema mudo; é uma exploração contemporânea de temas universais que transcendem o terror, como a repressão, o desejo, a moralidade e a doença mental.
O ponto de partida da história é familiar, com Thomas Hutter (Nicolas Hoult) viajando para a Transilvânia para negociar a venda de uma propriedade com o misterioso Conde Orlok (Bill Skarsgård). No entanto, Eggers vira a trama de cabeça para baixo ao dar mais profundidade à personagem de Ellen (Lily-Rose Depp), que não é apenas uma vítima passiva, mas uma mulher consciente de sua própria luta interna com a sexualidade, a repressão e o medo que Orlok desperta. A introdução de Ellen é inquietante, com a jovem sendo subjugada a forças invisíveis, criando uma conexão precoce com o vampiro que transcende o convencional "romance" com o monstro. Eggers resgata a essência do filme de Murnau, mas também subverte a tradicional dinâmica de poder, tornando Ellen o centro de sua própria narrativa.
No núcleo do filme, encontramos uma reflexão sobre o que é a moralidade e de onde ela se origina. A sociedade trata Ellen como uma mulher instável, atribuindo sua angústia a doenças mentais enquanto ignora a verdade que ela tenta desesperadamente transmitir. O filme, então, se torna um comentário perturbador sobre como as mulheres, especialmente aquelas que desafiam normas sociais e expectativas, são vistas e tratadas. A repressão sexual é uma constante, e Orlok, com sua presença monstruosa e sedutora, se torna a personificação da opressão e do desejo reprimido. Há uma tensão palpável entre o desejo e a violência, com a personagem de Ellen lidando com uma realidade distorcida entre esses dois extremos.
Bill Skarsgård, como Conde Orlok, oferece uma performance de arrepiar. Sua encarnação do vampiro é profundamente perturbadora, não apenas fisicamente, mas na maneira como sua voz e presença vão se infiltrando aos poucos, quase como um pesadelo que não sabemos se é real. A decisão estética de Eggers de tornar Orlok uma figura cadavérica e imponente, em vez de um simples monstro sedutor, adiciona uma camada de desconforto. O uso da fotografia sombria, com sombras tortuosas e uma iluminação que parece irreal, amplifica o clima de distorção e desespero.
A questão da doença mental é outra temática central, com Ellen sendo vista como "louca" ou "deprimida", mas Eggers e Depp transformam esse estigma em algo muito mais profundo. O corpo de Ellen, contorcido e invadido pela presença de Orlok, torna-se o campo de batalha onde se travam batalhas internas que ninguém mais entende. Eggers traz à tona uma reflexão sobre como a sociedade lida com o sofrimento das mulheres, especialmente quando esse sofrimento é invisível, e o faz de maneira tanto arrebatadora quanto perturbadora. A ideia de ser ignorado e diagnosticado erroneamente ressoa de maneira forte, fazendo o filme não apenas assustador, mas emocionalmente devastador.
O uso de uma trilha sonora que ecoa o som do próprio mal, a repetição do suspiro e gemido de Orlok, e a alternância entre a realidade e o pesadelo transporta o espectador para um estado onírico. A narrativa visual, ao mesmo tempo desconcertante e fascinante, parece flutuar entre o real e o imaginário, com Eggers utilizando sua câmera como um instrumento para nos puxar mais fundo no abismo psicológico da história.
O filme também é um estudo de como os filmes de terror evoluíram, com Eggers não apenas rendendo homenagem ao Nosferatu original, mas também incorporando elementos do filme de Coppola de 1992, criando uma narrativa de amor obsessivo e perseguição. Isso torna Nosferatu não apenas uma reinterpretação, mas uma fusão de influências que ressoam no contexto contemporâneo, abordando questões de poder, desejo e controle.
Em um ano de grandes lançamentos no gênero de terror, Nosferatu de Eggers se destaca como um dos maiores marcos. Não é apenas um filme de vampiro, mas uma obra de arte profundamente inquietante, que combina o grotesco com o psicológico e o filosófico. Com uma cinematografia impressionante, performances memoráveis e uma direção refinada, Nosferatu não apenas assusta, mas faz o espectador questionar suas próprias convicções sobre moralidade, desejo e o que significa ser humano. Em um mercado saturado de remakes e reboots sem alma, Eggers prova que há ainda espaço para o novo e o criativo, oferecendo uma versão do clássico que fala diretamente aos horrores do nosso tempo, apesar de ser um longa bem pesado e com tudo muito explícito.
Esse Nosferatu é mais do que um remake, é uma reinterpretação carregada de simbolismo e tensão emocional, um filme que assombra e, por fim, parte o coração.
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