CRÍTICA | MANAS
Há filmes que não se contentam em contar uma história, eles gritam, mesmo em sussurros. Manas, longa da cineasta Marianna Brennand, é um desses filmes. Nascido da urgência de expor a violência sexual infantil na Ilha do Marajó, no Pará, o filme ergue-se como um retrato feroz, sensível e profundamente necessário da barbárie cotidiana que permeia as margens invisíveis do Brasil.
Ambientado em uma comunidade ribeirinha isolada, Manas acompanha Marcielle (Jamilli Correa, em atuação impactante e madura), uma menina de 13 anos cuja infância se dissolve diante de ciclos de violência doméstica e exploração sexual. O que a princípio soa como um drama social em tom quase bucólico, crianças colhendo açaí, brincadeiras na floresta, a vida em harmonia com o rio, logo revela-se um pesadelo silencioso, onde o abuso floresce dentro do próprio lar.
A grande virtude do filme está em sua abordagem, a câmera de Brennand se recusa a fetichizar a dor. Nada de mostrar o abuso em cena. A violência é construída em torno do que não se mostra, do que se insinua nos olhares, nos silêncios, na sugestão. Um jogo ético e estético de extremo rigor, que transforma o não dito em denúncia ensurdecedora. É o desenho de som, aliado à fotografia de baixa saturação e luminosidade, que dá corpo aos horrores ocultos daquele cotidiano. A floresta que antes parecia mágica, logo se torna claustrofóbica.
O roteiro, assinado por um time diverso de roteiristas, incluindo a própria diretora, escapa do maniqueísmo fácil. Marcílio, vivido com desconcertante ambiguidade por Rômulo Braga, não é apenas o "monstro", ele também canta, cuida, conversa. Esse traço é fundamental para denunciar a naturalização do abuso dentro de estruturas patriarcais perversas. Danielle, a mãe (Fátima Macedo), aparentemente omissa, revela-se uma figura trágica não cúmplice, mas sobrevivente. Seu silêncio não é complacência, é resignação. É a mulher que já foi violentada e que acredita não haver saída.
A presença de Dira Paes como delegada Aretha representa o olhar externo, a possibilidade de justiça, mas é uma figura limitada, realista. Manas reconhece que a solução não virá de um salvador. Em vez disso, a fuga de Marcielle e sua irmã ao final do filme sugere não a salvação, mas uma ruptura. Uma tentativa, ainda que frágil e improvável de quebrar o ciclo.
Na construção narrativa, há um evidente didatismo, que por vezes se aproxima do risco do fatalismo, a repetição das situações de abuso pode transmitir uma sensação de clausura sem saída. No entanto, a direção soube equilibrar essa dureza com respiros de humanidade nos gestos de afeto entre as irmãs, no sonho de ter uma identidade, no simples desejo de ter sua própria rede para dormir.
A atuação de Jamilli Correa é um achado raro. Em sua estreia no cinema, ela sustenta a personagem com uma presença silenciosa, mas devastadora. Sua Marcielle não é uma heroína arquetípica, é uma menina ferida, mas lúcida, passiva, mas estrategicamente atenta. Sua luta é travada nos olhos.
Manas não é um filme fácil, nem deve ser. É um soco. Mas é também um manifesto ético sobre o papel do cinema como ferramenta de denúncia, memória e transformação. Ao escolher a ficção para abordar um tema tão real e brutal, Marianna Brennand alcança o equilíbrio delicado entre respeito, sensibilidade e contundência. E nos lembra, com tristeza e urgência, que o Brasil profundo ainda grita, mesmo que ninguém queira ouvir.
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